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Postado por admin em 10/jan/2024 -
1. Considerações iniciais

Interpretando a redação originária do artigo do 265 do Código de Processo Penal (CPP), editado pelo Decreto-Lei n.º 3.689/1941 – com vigência em 1.º de janeiro de 1942 –, podemos concluir que o texto, desde a sua origem, já intencionava punir o advogado pecuniariamente, no valor de “cem a quinhentos mil-réis”, caso o causídico “abandonasse” a causa, sem motivo justo ou legal. Lembremos que sempre foi a OAB o órgão correicional do advogado. Note-se o conteúdo redacional de origem: 1 CPP, artigo 265. O defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, a critério do juiz, sob pena de multa de cem a quinhentos mil-réis.

Com isso, não é preciso ir muito longe para se denotar que a legislação processual penal, desde da sua edição em 1941, sempre tratou o advogado como um “profissional do Direito subordinado” ao juiz, haja vista que referida norma processual deixava – e isso continuava – sob a discricionariedade do julgador do feito o arbitramento de multa pecuniária para o caso de “abandono do patrocínio processual” pelo defensor. Aqui é preciso, desde logo, a título de reflexão, rechaçar essa nomenclatura pejorativa, nominada de “abandonar” pelo CPP, atribuída a uma conduta profissional do advogado/defensor, por vezes preservadora dos direitos e garantias constitucionais do cidadão defendido e assim tida como abandono pelo juiz.

Tecnicamente, com todo o respeito, o advogado não “abandona a causa” – assim como o médico não entrega o seu paciente a própria sorte durante a cirurgia, a exemplo –, não só por ele bem conhecer e temer todas as graves e múltiplas consequências jurídicas advindas de sua eventual desídia, mas principalmente por existir meios legais e justificáveis para ele se afastar ou ser afastado do feito criminal que patrocina. A prova inconteste disso é que os advogados permanecem patrocinando a mesma causa, por décadas: em duas instâncias, em tribunais superiores, na execução da sentença/pena, em revisão criminal ou ação rescisória.

Nesse passo, importante destacar que o juiz tem o dever de zelar pela paridade de condições entre as partes, anulando o processo ou alguns de seus atos também em caso de desídia ou inépcia do profissional do Direito (e isso se aplica tanto ao advogado/defensor como ao promotor) que ocasionar comprovado prejuízo ao acusado. Aliás, o próprio juiz poderá ser afastado da causa se vier a transgredir o princípio devido processo legal.

Enfim, o cidadão acusado jamais poderá ser prejudicado pela desídia processual de algum dos profissionais do Direito que atua na sua causa, até por que outro profissional pode substituir aquele comprovadamente reconhecido como desidioso; além disso é pelo processo penal que se materializa a tutela jurisdicional, a partir, sobretudo, da busca e aplicabilidade da Justiça ao caso criminal em concreto, primordialmente fundado em regras e em procedimentos preexistentes e norteados pela Constituição da Federal.

É ilógico, nesse contexto e para essa específica situação, tal legislação processual prevê a prática de uma conduta “antiprofissional” (“abandonar o processo”), que contraria o próprio sentido do ordenamento jurídico e se mostra completamente incompatível com a indispensabilidade e a essencialidade do exercício constitucional da Advocacia pelo advogado, constituído ou dativo, ou pelo defensor público, de acordo com os artigos 5.º, inciso LXIII, e 133 da Constituição Federal, e com o artigo 261 do CPP: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”.

Admite-se, contudo, que o advogado se afaste ou seja afastado do processo em que atua pelas vias legais e racionalmente justificáveis, exemplos: revogação, renúncia ou conclusão do mandato outorgado (pode ocorrer a constituição do causídico somente para determinada fase processual ou a pratica de certos atos), contratação de advogado de confiança pelo acusado defendido de forma dativa, além da desconstituição judicial por inépcia (artigo 497, inciso V, do CPP).

Retomando à temática central, o artigo 265 do CPP sofreu a sua primeira alteração redacional no ano de 2008, ou seja, 67 anos após a edição daquele código, notadamente pela Lei Federal n.º 11.719 – com o fim claro de atualizar o formato processual punitivo ao advogado, bem como ampliar a discricionariedade do juiz quanto ao arbitramento pecuniário e o seu duplo sancionamento –, recebendo então a seguinte redação, já revogada:

CPP, artigo 265. O defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso, comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

Após essa alteração legislativa em 2008, a advocacia, sobremaneira àquela atuante na esfera criminal, se viu constrangida e, por inúmeras vezes, convidada a desafiar essa real e constante ameaça de punição pecuniária com o fim de preservar, em grande medida, os direitos e garantias constitucionais do cidadão defendido e a suas próprias prerrogativas profissionais, constantemente violadas em audiências e julgamentos.

E isso não era uma estratégia jurídica defensiva nada fácil e palatável para o advogado colocar em pratica. Era muito comum em audiências e julgamentos pelo Tribunal do Júri – neste com mais frequência –, o juiz do caso indeferir as provas requeridas e até mesmo o uso do traje civil pelo cidadão acusado quando do seu julgamento, violando assim os princípios constitucionais da ampla/plenitude de defesa e o contraditório (CF, artigo 5.º, inciso LV), reduzindo significativamente as possiblidades do cidadão julgado de um resultado que lhe fosse favorável ou de uma decisão verdadeiramente justa.

Dessa forma, referida estratégia defensiva raramente era compreendida pelo julgador, de modo que as multas por ele aplicadas – na sua grande maioria de 10 salários mínimos – eram inevitáveis. E, em muitos casos, além da referida multa, o juiz destituía o patrono constituído ou dativo e, mediante ofício, ainda representava o advogado no Tribunal de Ética e Disciplina da respectiva Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), resultando assim numa “tripla sanção”, ou seja, multa e destituição processual, seguida de representação ética no órgão de classe, todas elas sem o prévio devido processo legal.

Por sua vez, as comissões de defesa das prerrogativas da advocacia das subseções e seccionais da OAB, em grande medida, com as condições materiais e humanas existentes, bem assim quando acionadas pelos advogados multados, reagiram prontamente a tais decisões judiciais “arbitrárias”, via mandado de segurança, com pedido de liminar, caso a caso, obtendo êxito na maioria dessas impetrações, seguindo com recurso cabível quando negada a segurança. Esse valoroso trabalho dos membros dessa comissão perdurará por mais tempo, ante a novel legislação em testilha.

O labor da OAB, nesse aspecto, foi mais adiante, chegando ela a promover, ainda em 2010, uma Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI 4.398-DF) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), sustentando ali ser inconstitucional a multa prevista no aludido artigo 265 do CPP. 3 A douta relatora, Ministra Carme Lúcia, para o nosso desalento, todavia, após o regular processamento, não acolheu o pleito da OAB, julgando improcedente tal pedido, por maioria (6 x 5), contando inclusive com os pareceres contrários da Procuradoria Geral da República e da Advocacia Geral da União. Eis a ementa do v. Acórdão da ADI:

Ação Direta de Inconstitucionalidade. Caput do art. 265 do Código de Processo Penal. Aplicação de Multa de dez a cem salários mínimo ao advogado que abandona injustificadamente o processo, sem comunicação prévia ao juízo. Constitucionalidade. Disposição Legal que visa assegurar a administração da justiça, a razoável duração do processo e o direito indisponível do réu à defesa técnica. Ação Direta julgada improcedente.

Ainda relacionado à essa intepretação da relatora da ADI – prevalecente, por 6 votos a 5 –, oportuno trazer à baila o entendimento divergente e vencido do Ministro Edson Fachin, o qual julgava procedente o pedido constante da ADI para declarar inconstitucional a multa pecuniária prevista no artigo 265, caput, do CPP; pelo que foi ele, na oportunidade, acompanhado por 4 outros ministros, cujos quais foram convencidos do conteúdo interpretativo dado ao relevante caso:

Em outras palavras, a cominação de sanção de natureza penalizante à inação deve se justificar constitucionalmente. No caso concreto sob análise, o texto da Constituição Federal de 1988 não compreende, em seu bojo, nenhuma norma que obrigue o advogado a exercer sua profissão nos termos ideados pelo art. 265 do Código de Processo Penal. Essa intervenção na área de proteção material do direito à liberdade de trabalho do advogado revela-se mais problemática à medida que, em seu funcionamento, reduzem-se as vias procedimentais de defesa e contestação.

Constato, neste sentido, violação ao conjunto normativo do direito ao contraditório, do direito à ampla defesa, do direito ao devido processo legal e do direito à presunção de não culpabilidade, uma vez que o art.

265 autoriza ao magistrado, após a constatação de abandono do processo, a aplicação imediata da sanção repressiva.

(…)

Ocorre que as multas por litigância de má-fé têm natureza distinta daquela do “abandono do processo”. O conteúdo semântico do sintagma “abandonar o processo” é não somente bastante mais indeterminado e amplo, senão também muito mais tangente à área de proteção do direito à liberdade de trabalho. Porque excede a perquirição de eventual má-fé processual, a noção de “abandono” implica riscos mais elevados ao direito fundamental ao trabalho livre.

Concomitante ao ajuizamento da aludida ADI, a OAB também trabalhou efetivamente no Congresso Nacional para aprovar Projeto de Lei (PL) n.º 4.727/2020, 5 de iniciativa do Presidente do Senado, Senador Rodrigo Pacheco do PSD/MG, com tramitação bicameral, que almejava a extinção da multa pecuniária do aludido artigo 265 do CPP. Após tramitar regulamente e ser aprovado nas duas Casas Legislativas, foi o citado PL sancionado pela Presidência da República, em 12/12/2023, e transformado na Lei n.º 14.752/2023, com a novel redação:

CPP, artigo 265. O defensor não poderá abandonar o processo sem justo motivo, previamente comunicado ao juiz, sob pena de responder por infração disciplinar perante o órgão correicional competente.

Oportuno ainda asseverar, que a sobredita lei nova também alterou o Código de Processo Penal Militar (CPPM), mais especificamente o § 6.º, 7 do seu artigo 71, para dele constar a mesma redação contida no CPP.

Agora, o próximo trabalho hercúleo da advocacia e da OAB é, em cada feito e a pedido do advogado interessado, ingressar nos processos em tramite ou já finalizados para requerer, por meio da medida legal adequada (petição simples, mandado de segurança etc.), a extinção da multa pecuniária aplicada pelo juiz, ao argumento de que a Lei n.º 14.752/2023 retroage para beneficiar todos aqueles causídicos multados com base no texto anterior do artigo 265 do CPP.

Essa retroatividade da lei processual penal nova, portanto, é o tema do próximo tópico e central deste artigo.

2. A retroatividade da lei processual penal n.º 14.752/2023 revogatória da pena de multa do artigo 265 do CPP

Durante longos 15 anos (2008 a 2023) de vigência da anterior redação do artigo 265 do CPP, foi ele o fundamento legal para que os juízes brasileiros aplicassem milhares de multas pecuniárias, em ações penais específicas, e na sua grande maioria de dez salários mínimos. Entretanto, alterada a redação do mencionado artigo pela Lei n.º 14.752/2023, cuja qual extinguiu a multa ali prevista, sob a nossa ótica, essa nova norma reveste-se de retroatividade e, dessa forma, beneficia todos aqueles advogados multados com base na regra anterior.

Os argumentos e os fundamentos jurídicos para tanto não exigem esforços retóricos excessivos e nem uma interpretação jurídico-filosófica muito avançada. A questão aqui posta resolve-se, com a permissa vênia, pela interpretação da própria Constituição Federal, notadamente do seu artigo 5.º, inciso XL, onde está esculpido a garantia constitucional da irretroatividade da lei penal, ou seja: a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

A primeira indagação que se faz, a partir desse preceito constitucional e garantidor, é o que se entende juridicamente por “lei penal”? Qual é a sua abrangência ou alcance? E uma singela análise dessa mencionada garantia da Constituição, nos permite depreender claramente que o legislador constituinte cuidou dessa questão como “gênero” (penal); isto é, como parte integrante de ordenamento jurídico (penal/processual penal) e não apenas como direito material. Os constitucionalistas, majoritariamente, interpretam esse mesmo tema de forma sistémica e, ademais, a Assembleia Constituinte, que nos legou uma “Constituição Cidadã”, tão rica em direitos, garantias e dignidade, não foi mesquinha e nem antissistémica a tal ponto. Pelo contrário.

André Ramos Tavares, 8 enfatiza que a Constituição é considerada como um sistema e, nessa medida, “um conjunto coeso de normas”, de modo a considerá-las ordenadas, perfazendo um corpo harmonizado. Já o insigne José Joaquim Gomes Canotilho, 9 ressalta que “a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismo) entre as suas normas.

Com isso, respeitosamente, penso que não deve, sobretudo o profissional do Direito, reduzir ou limitar a interpretação (constitucional) de tal norma ao seu “universo reservado” – classista ou conservador –, mas sim interpreta-la sistemicamente, de acordo com todas as leis penais, processuais penais e demais legislações. Aliás, não há como se conceber um sistema penal sem o processo penal. E a razão para isso é lógica: é o Processo Penal quem dá vida, materializa o Direito Penal, e este não subsiste sem aquele, vice-versa. Isso é feito em benefício do próprio sistema jurídico.

Para que ocorra a retroatividade da lei penal mais benéfica, no caso em concreto, é preciso acionar jurisdição penal, por meio do devido processo e seu procedimento apropriado, a revelar que sem a lei penal processual não se alcança a concretude da garantia constitucional desejada pelo legislador constituinte. Por isso é que a intepretação acima esposada está de acordo com o sistema posto.

Daí, portanto, a óbvia conclusão de que a referência feita pelo legislador originário a “lei penal” contempla também a lei processual penal (o CPP, o CPPM etc.), estando explicita no artigo 5.º, inciso XL, da CF; logo, o disposto na recente Lei n.º 14.752/2023, de natureza penal processual e hibrida, retroage para beneficiar todos os advogados multados com base na norma revogada.

O Supremo Tribunal Federal, 10 quando do julgamento do Habeas Corpus n.º 220.249-SP, em 19/12/2022, da relatoria do Ministro Edson Fachin, na sua 2.ª Turma, por unanimidade, promoveu uma histórica virada interpretativa constitucional acerca do aludido preceito em evidência (inciso XL, do artigo 5.º, da CF), interpretando como constitucional a retroatividade do artigo 28-A do CPP: 11

A expressão “lei penal” contida no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal é de ser interpretada como gênero, de maneira a abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo. O art. 28-A do Código de Processo Penal, acrescido pela Lei 13.964/2019, é norma de conteúdo processual-penal ou híbrido, porque consiste em medida despenalizadora, que atinge a própria pretensão punitiva estatal.

Conforme explicita a lei, o cumprimento integral do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar maus antecedentes ou reincidência. Essa inovação legislativa, por ser norma penal de caráter mais favorável ao réu, nos termos do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, deve ser aplicada de forma retroativa a atingir tanto investigações criminais quanto ações penais em curso até o trânsito em julgado. (…) A incidência do art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal, como norma constitucional de eficácia plena e aplicabilidade imediata, não está condicionada à atuação do legislador ordinário.

Vale destacar, todavia, que essa significativa virada interpretativa deu-se após 27 anos, quando o mesmo STF, por sua 1.ª Turma, a unanimidade, no julgamento do AI 177.313/AgR-ED, em 18/06/1996, de relatoria do Ministro Celso de Mello, havia interpretado a mesma garantia constitucional (inciso XL, do artigo 5.º, da CF) em sentido contrário, isto é, para negar a retroatividade da lei penal processual no sobredito contexto, e assim sedimentar o entendimento de que a retroatividade só se aplicaria ao direito material (penal):

A cláusula constitucional inscrita no art. 5º, XL, da Carta Política – que consagra o princípio da irretroatividade da lex gravior – incide, no âmbito de sua aplicabilidade, unicamente, sobre as normas de direito penal material, que, no plano da tipificação, ou no da definição das penas aplicáveis, ou no da disciplinação do seu modo de execução, ou, ainda, no do reconhecimento das causas extintivas da punibilidade, agravem a situação jurídico-penal do indiciado, do réu ou do condenado.

Outra indagação pertinente ao tema em questão decorre da condição processual penal do advogado multado, nos termos da anterior redação do artigo 265 do CPP. Ora, na relação processual, de acordo com aquele códex, o advogado atua na qualidade de defensor da parte acusada (artigo 261 do CPP) e não como parte ou acusado. Mas essa situação se invertia inteiramente após a aplicação da multa pecuniária pelo juiz da causa, levando o causídico a autodefender-se nos mesmos autos em que foi constituído ou nomeado para patrocinar a defesa do cidadão acusado. Na grande maioria dos casos, antes mesmo da sentença, o julgador do feito já havia condenado alguém: o advogado.

A curiosidade, nesse aspecto, está no fato de que a multa pecuniária aplicada ao advogado subsistia, apesar de eventual absolvição do cidadão defendido na ação penal, permanecendo apenas o defensor do feito como o único ali sancionado ou punido.

O processo penal é, sobremodo, o instrumento concretizador das regras do direito penal, fundado no princípio do devido processo legal (CF, artigo 5.º, inciso LIV); de maneira que eventual sanção penal aplicada pelo juiz dentro da ação penal resulta do reconhecimento da violação a determinado tipo penal (crime e contraversão), atribuído ao acusado pelo Ministério Público.

No tocante à multa processual aplicada pelo juiz ao defensor, na mesma ação por ele defendida, trata-se de uma sanção pecuniária de natureza (processual) penal até então fundada na anterior redação do artigo 265 do CPP. Assim, mostra-se como indubitável que foi a “lei penal” (processual) quem, de fato, autorizava a aplicabilidade de determinada multa penal pecuniária ao advogado; ou seja, instituiu ela uma “decisão de caráter penal”, originária e consequente do exercício da atividade advocatícia.

Como visto, não se pode dissociar o processo penal da lei penal (material), conforme vislumbra-se da intepretação gramatical e “reducionista” de certa garantia constitucional, formulada por partes dos comentaristas, sobremaneira da área penal. A “lei penal”, como já exposto, traz na sua essência a lei processual penal, de sorte que o conteúdo do atual artigo 265 do CPP, alterado pela novel lei, recepciona a incidência da retroatividade dessa norma, justamente por ser ela mais benigna ao infrator (no caso, o advogado sancionado), ante a extinção da multa (“arbitrária”).

Em suma, todo esse contexto visa também repercutir – e continua a exigir – a coesa e harmônica interpretação constitucional que deve pautar e incidir sobre o conteúdo do disposto no inciso XL, do artigo 5.º, da CF, haja vista trata-se de garantia constitucional norteadora de um amplo sistema jurídico e vivo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua vez, dias antes do encerramento de suas atividades em 2023, manifestou-se sobre essa novíssima e polêmica temática, por meio da decisão monocrática da Ministra Daniela Teixeira, proferida no Recurso Especial n.º 2108775-PR, 13 interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná concessivo do Mandado de Segurança, em que é recorrente o Ministério Público daquele Estado e recorrida a Seccional da OAB da mesma Unidade Federativa. A OAB pleiteou e obteve ali a concessão da segurança para revogar a multa pecuniária em foco aplicada a uma advogada, pelo Juízo da 2.ª Vara/Plenário do Júri de Curitiba.

Essa decisão, proferida exatamente em 15/12/2023, três dias após a vigência da Lei n.º 14.752 de 12/12/2023, é a primeira interpretação infraconstitucional coerente e coesa que o STJ produziu sobre a “retroatividade da lei processual penal” em testilha para beneficiar todos os advogados anteriormente multados.

Os argumentos expendidos por essa recente decisão do STJ são, destacadamente, sólidos, coesos e harmonizados com sistema de normas, posto ter sido observado o conflito existente entre a imposição da multa pecuniária anterior pelo juiz (artigo 265 do CPP) e a prerrogativa da “paridade profissional” da Advocacia (ausência de hierarquia e subordinação) com os demais profissionais do Direito, prevista no artigo 6.º, caput, da Lei n.º 8.906/1994 – EAOAB.

Junte-se a isso, um outro conflito presente e que decorre dessa mesma situação jurídica enfatizada pelo STJ: a indevida “subtração” pelo julgador da prerrogativa institucional da OAB de, exclusivamente, promover a correição e a disciplina dos inscritos nos seus quadros, mais especificamente o advogado (artigos 34, inciso XI, 44, inciso II, e 70, do EAOAB). Por outros palavras, o juiz da ação penal respectiva, ao aplicar àquela multa pecuniária ao advogado, por suposto “abandono do processo”, “usurpava” assim da competência correicional e exclusiva da OAB. Eis o trecho essencial dessa decisão: Em 12 de dezembro de 2023, foi publicada a Lei n. 14.752 que alterou o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 (Código de Processo Penal Militar), para disciplinar o caso de abandono do processo por defensor, dativo ou constituído. Entrou em vigor na data de sua publicação e alterou a redação dos artigos 265 do CPP e 71 do CPPM, excluindo dos dispositivos legais qualquer menção à aplicação da sanção de multa, por autoridade judiciária, à advogados.

(…)

Um dos aspectos que fundamentou a proposta de alteração legislativa, que se efetivou na Lei acima citada, está no entendimento de que o dispositivo conflitava com o artigo 6º do Estatuto da OAB (Lei 8609/94), o qual estabelece não haver “hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público”. Não havia, portanto, como se admitir que um juiz pudesse aplicar punição à advogado supostamente faltoso, assumindo uma posição de presumida superioridade com relação àquele.

Da mesma forma, a multa prevista no antigo art. 265 do CPP se caracterizava como uma violação manifesta ao livre exercício da advocacia, posto que retirava da Ordem dos Advogados do Brasil o dever-poder, personalíssimo, de punir os inscritos em seus quadros (art. 5º, XIII, CF e artigos 34, inciso XI, 44, inciso II, e 70, todos da Lei nº 8.906/1994).

Além disso, referida decisão do STJ adotou também, como fundamento, o valioso voto vencido do Ministro Edson Fachin, seguido por 4 outros ministros do STF, proferido na ADI 4.398-DF – onde se reconheceu a constitucionalidade da multa em questão, por 6 x 5 votos –, para ressaltar que a multa pecuniária, ora revogada, implicava na violação da liberdade do exercício profissional da advocacia, fundando no artigo 5.º, inciso XIII, da CF:

A cominação da pena de multa para o defensor que abandona o processo retira da profissão de advogado o espaço de liberdade assegurado pelo art. 5º, XIII da Constituição Federal. Neste sentido, condena-se a opção do sujeito pela inação ou, eventualmente, pelo nãotrabalho. Há que se privilegiar uma leitura do dispositivo constitucional referido que albergue a inatividade, a priori, na área de proteção material da norma. Afinal, a liberdade de trabalho compreende não apenas a escolha de determinada profissão, senão também o conjunto de escolhas associado ao exercício dessa profissão.

O decisum ora analisado, de igual maneira, salientou que (i) a imposição de tal multa pecuniária do artigo 265 do CPP violava prerrogativa da advocacia, o que implicaria na sua relevância constitucional, já que é “Função Essencial à Justiça”; (ii) além do que, a multa em tela possuía a natureza autentica de uma pena, aplicada ao advogado, à revelia do processo legal devido, e, por isso, possui a lei novel o status de norma processual mista (hibrida: material e processo):

A partir dessa perspectiva e da importância constitucional dada à advocacia, todo e qualquer questionamento realizado com relação à multa imposta pelo art. 265 do CPP, ora revogado – seja pelo Conselho Federal da OAB ou quaisquer de suas seccionais-, fundava-se no fato de que aquele dispositivo, inequivocamente, violava as prerrogativas da advocacia, transcendendo a tutela de interesses subjetivos individuais dos componentes de seus quadros.

(…)

Não há dúvidas que o dispositivo revogado previa a aplicação de verdadeira pena, sem o devido processo legal e sem assegurar ao profissional o exercício do contraditório e da ampla defesa, conforme art. 5º, LIV e LV, do texto constitucional. Assim, mesmo que a referida multa fosse prevista na legislação processual penal, tinha ela natureza de norma processual mista, ou de conteúdo material sendo, portanto, aplicável o artigo 2º, parágrafo único do Código Penal. Finaliza a decisão do STJ em comento, asseverando que as multas aplicadas com base no artigo 265 do CPP violaram as prorrogativas advocatícias, assim como limitaram ou reduziram a atuação do advogado/defensor em defesa ampla/plena do cidadão; de modo que a novel lei processual penal, n.º 14.752/2023, deve retroagir para alcançar todas essas hipóteses.

3. Conclusão

A retroatividade da norma processual penal é perfeitamente aplicável quando a lei nova, no caso a lei n.º 14.752/2023, possuir uma natureza mista (hibrida: material e processual), uma vez que a expressão “lei penal”, constante do artigo 5.º, inciso XL, da CF, é entendida como “gênero”, pelo Supremo Tribunal Federal, de sorte que a intepretação ali adota incluí a lei processual penal; logo, quando a Lei Fundamental se refere a “lei penal”, inclusa está a lei penal processual.

O interprete da Constituição deve sempre buscar interpretá-la como um sistema, consistente num conjunto coeso de normas, ordenadas, como um corpo harmonizado, evitando contradições entre normas. E, ademais, a interpretação sistêmica resulta do entendimento de que o Direito é um ordenamento, de maneira que a sua unidade decorre da força do texto constitucional.

Historicamente, com a complacência de certas regras processuais, parte significativa dos juízes permanecem acreditando que “podem/devem” também exercer alguma disciplina ou correição de natureza processual (penal) sobre os advogados, até porque essa última sanção revogada, prevista no artigo 265 do CPP, esteve vigente no sistema por “apenas” 67 anos e, neste ínterim, foi ele aperfeiçoado.

A OAB é a instituição com competência exclusiva para punir disciplinarmente o advogado, por eventuais infrações decorrentes de sua atividade profissional (artigos 34, inciso XI, 44, inciso II, e 70, do EAOAB). E isso subsiste, com a constante atualização das regras disciplinadoras da classe, desde o advento do Instituto dos Advogados do Brasileiros (IAB), em 7 de agosto de 1843, primeiro órgão representativo da Advocacia. O sancionamento do advogado na ação penal em que ele atuou, notadamente por meio de multa pecuniária prevista no regramento processual penal, traveste-se de autêntica pena, aplicada com desprezo ao devido processo legal, consistindo em violação de prerrogativas da advocacia; além de retirar dessa sagrada profissão a liberdade assegurada pela Constituição, no seu artigo 5.º, inciso XIII.

Portanto, todas as circunstâncias jurídicas expendidas, aliadas ao especifico acervo argumentativo delineado, constitucional e infraconstitucional, denotam que são eles suficientes para justificar a retroação da Lei n.º 14.752/2023 – que revogou a multa do artigo 265 do CPP e, por isso, mais benéfica ao infrator –, para extinguir todas as multas pecuniárias aplicadas aos advogados, embasadas naquela anterior e ultrapassada regra processual penal.