(publicado no site www.conjur.com.br,
em 03 de março de 2008).
Edson
Pereira Belo da Silva, advogado, professor
de processo penal, autor de obras jurídicas, pós-graduado em direito,
Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia,
membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista
e palestrante ([email protected]).
01. Considerações
iniciais.
O cartão coorporativo (ou Cartões de Pagamentos
do Governo Federal) não tem sido utilizado para o fim pelo qual
foi implementado pela Administração Pública. Pelo menos é o que
se depreende do noticiário político Nacional. (1) Ele foi criado para facilitar o pagamento de pequenas
despesas decorrentes da aquisição de serviços e produtos (combustíveis,
material de escritório, viagens, hospedagem, etc.), ou seja, com
os gastos imediatos que dispensam “licitação” ou “tomada de preço”
(Lei Federal n.º 8.666/1993), além de permitir saques
Milhares são os cartões corporativos nas
mãos dos agentes públicos, notadamente 11.510 só em 2007, segundo
noticiaram o Ministério do Planejamento e a Controladoria Geral
da União à página da Agência Brasil na Web. (2) A
fiscalização, consoante artigo 71 da CF e Lei Federal n.º
8.443/1992, fica a cargo dos respectivos Tribunais de Contas dos
entes federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios), os
quais recebem ou não os comprovantes dos gatos e saques então
realizados. E é aí que reside o problema.
Se há irregularidades no uso de tais cartões
– e as provas nesse sentido são robustas, tanto que uma Ministra
já deixou a pasta em razão disso e uma Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito (CPMI) já se avizinha –, não temos dúvidas que isso
é muito bem alimentado pela manifesta ausência de fiscalização
daquele órgão competente ou, se ela existe, é feita pifiamente.
Também, pelo número inacreditável de cartões em uso, tornou-se
praticamente impossível fiscalizar todos os gatos e saques dos
funcionários contemplados.
Aliás, inúmeras são as atividades das Cortes
de Contas, sobretudo a da União, que tem jurisdição em todo território
nacional e é composta por nove ministros (artigo 73, da CF). Saliente-se,
contudo, que um terço dos referidos ministros são nomeados pelo
Presidente da República e dois terços pelo Congresso Nacional
(§ 2.º, incisos I e II, do dispositivo constitucional citado).
O que mais chama, na verdade, à atenção
não são as compras de produtos ou serviços (tapioca, chocolate,
ursinho de pelúcia, manutenção de mesa de bilhar, aluguel de carros
para curtir as férias, etc.) que não guardam relação com a atividade
que o servidor público exerce, mas sim os saques em dinheiro com
cartão, cujo montante chegou a 58 milhões, o qual representa cerca
75% do valor total gasto com cartão em 2007 (78 milhões), conforme
revelou o Controlador Geral da União (CGU) ao portal da Agencia
Brasil. (3)
A cgu,
também exerce o papel fiscalizador dos gastos com os cartões
corporativos, mas a sua parcialidade é manifesta por ser um órgão
diretamente ligado ao Chefe do Poder Executivo Federal, daí não
gozar ela de credibilidade e poder suficiente para “cortar na
própria carne”.
Dos 58 milhões sacados com os cartões o
ano passado, ninguém, ninguém mesmo, é capaz de afirmar que eles
foram todos devidamente comprovados perante os órgãos fiscalizadores
e destinados ao interesse social ou ao bem comum. São milhares
de cartões corporativos e de saques, muita necessidade no Brasil
afora, muitos interesses políticos em jogo, tudo isso e muito
mais deve mesmo inviabilizar a justificativa legal dos gastos.
02. Peculato
continuado.
De início, há que se deixar assente o conceito
legal de funcionário público, que é dado pelo artigo 327, caput, e § 1.º, do Código Penal: “Considera-se
funcionário público, para efeitos penais, quem, embora transitoriamente
ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. Equipara-se
a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em
entidade paraestatal, a quem trabalha para empresas prestadora
de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade
típica da Administração Pública”.
Portanto, para caracterização desse delito
é indispensável que o sujeito ativo (o autor do delito) seja funcionário
público, no amplo conceito mencionado acima. Por sua vez, no caso
em comento, somente aqueles no exercício da função pública é que
portam e desfrutam dos cartões corporativos; de sorte que eventual
“apropriação” ou “desvio” dos valores sacados, ou aquisição de
produtos ou serviços para satisfação de interesse particular,
enfim, desprovido de qualquer fim público, caracteriza o tipo
penal descrito no artigo 312 do Código Penal.
A vítima (o sujeito passivo) no crime de
peculato é o Estado e a entidade de direito público, haja vista
se tratar de delito contra a Administração Pública, nesse contexto
abrangidas as autarquias e as entidades paraestatais, que são
as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as fundações
instituídas pelo poder público.
Peculato, de acordo com o eterno magistério
do saudoso Nelson Hungria, “é o fato do funcionário público que,
tendo em razão do cargo, a posse de coisa móvel pertencente à
administração pública ou sob a guarda desta (a qualquer título),
dela se apropria, ou a distrai do seu destino, em proveito próprio
ou de outrem”. (4) Três são as modalidades:
(i) no peculato-apropriação, o verbo apropriar-se significa
assenhorear-se, tendo como o objeto material o dinheiro, valor
ou qualquer outro bem móvel, público ou particular de que tem
o agente a posse em razão do cargo; (ii) quanto ao peculato-desvio,
o funcionário público dá ao objeto material aplicação diversa
da que lhe foi determinada, em benefício próprio ou de outrem;
(iii) já no peculato-furto, o funcionário público não tem
a posse do objeto material e o subtrai, ou concorre para que outro
o subtraia, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade
que lhe proporciona a qualidade de funcionário. (5)
Consuma-se o delito com a efetiva apropriação,
desvio ou subtração do objeto material. Nesse sentido, o Supremo
Tribunal Federal assim manifestou-se: “O crime de peculato se
consuma no momento em que o funcionário se apropria do dinheiro,
valor ou bem móvel de que tem a posse em razão do cargo e desvia
em proveito próprio ou de terceiro” (RT 533/466). No mesmo diapasão:
Superior Tribunal de Justiça, em RT 792/578 e EJSTJ 30/259, JTACRIM
67/519. Admite-se também a “tentativa” em tal delito.
Ademais, o autor do delito necessita agir com
“dolo”, nas sobreditas modalidades, o qual consiste na vontade
livre e consciente de apropriar-se, desviar, subtrair ou concorrer
para a subtração, visando sempre proveito próprio ou alheio.
Do outro lado, a forma culposa do peculato
também é prevista pelo Código Penal, mais especificamente no §
2.º, do seu artigo 312. Age culposamente, o funcionário público
que, por negligência, imprudência ou imperícia, permite que haja
apropriação ou desvio, subtração ou concurso para esta. (6) Esse também é o entendimento jurisprudencial (TJSP,
RT 350/187, 488/312).
Alia-se ao tipo penal de “peculato” a continuidade
delitiva prevista no artigo 71 do mesmo diploma legal repressor
– matéria essa atinente à aplicação da pena –, uma vez que cada
cartão corporativo efetuou diversos saques em dinheiro, assim
como adquiriram inúmeros produtos e serviços, aparentemente, para
satisfação de interesse particular ou necessidade pessoal de determinados
servidores públicos.
A continuidade do delito de peculato ocorre
quando “o agente, mediante mais de uma
ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie
e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras
semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação
do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas,
ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de
um sexto a dois terços”. Este é o texto do artigo 71, do
CP.
Em outros termos, no caso dos cartões corporativos,
o crime de peculato continuado poderia ocorrer, ou está ocorrendo,
caso os servidores estivessem se apropriado do dinheiro sacado
e/ou dos serviços e produtos adquiridos com tais cartões, em mais
de uma ação. Por exemplo, se determinado funcionário público
efetua saques de R$ 500,00, em horas ou dias seguidos, ou alternados,
apropriando-se destes valores, intencionalmente, estará praticando
peculato em continuação ou vários peculatos; pelo que ele responderá
por um só delito dessa espécie, tendo, contudo, um aumento de
pena de um sexto a dois terços, caso seja condenado.
A sanção penal prevista para o delito de
peculato, na foram dolosa, é dois a doze anos de reclusão (artigo
312, do CP), e multa, acrescida do aumento de pena (artigo 71,
caput, do CP) mencionado no parágrafo anterior; ao passo que para
a forma culposa do mesmo crime, o Código Penal prevê pena de três
meses a um ano de detenção.
O Supremo Tribunal Federal, por seu turno,
tem se manifestado, em diversos casos, pela admissibilidade do
delito de peculato continuado. Note-se: “O peculato é crime que
admite a continuidade delitiva” (RT 546/450, RTJ 97/1294). Na
mesma linha, são os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça
(EJSTJ 27/126) e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
(RT 625/271, rjtjsp
18/397 e 22/479). Desta forma, resta pacificada a questão em referência
pela jurisprudência.
Vejamos outra circunstância relevante. Se
o funcionário público acusado de apropriação ou desvio de dinheiro
ou outro bem móvel, para evitar processo judicial ou administrativo,
ou assédio da mídia, resolve devolver a quantia ou bem da qual
se apropriou ou desviou não desfaz a conduta delituosa ou lhe
diminui a pena, nem mesmo se ele restituir aos cofres públicos,
com correção monetária e juro, antes do recebimento de eventual
denúncia ofertada pelo Ministério Público.
A nossa Suprema Corte, assim também tem
entendido: “O ressarcimento do dano não extingue a punibilidade
do peculato doloso. O que importa nesse crime não é só a lesão
patrimonial, mas, igualmente, a desmoralização a que fica exposta
a Administração Pública” (STF, RT 510/451). Note-se ainda: “A
só devolução da soma apropriada não exclui o tipo subjetivo do
delito (o dolo). A caracterização do peculato doloso não reclama
lucro efetivo por parte do agente” (STF, RT 605/309).
Já o Superior Tribunal de Justiça não destoa
desta posição suprema: “No peculato, a restituição do valor desviado
não importa, por si só, no afastamento do ‘animus rem sibi habendi’
(a intenção de possuir a coisa como própria), até porque para
a caracterização do tipo penal do artigo 312 é irrelevante a efetiva
obtenção da vantagem ilícita” (EJSTJ 37/307).
Nesse contexto, também não se pode desprezar
a figura penal do peculato mediante erro de outrem, prevista
no artigo 313, do Código Penal, também denominada pela doutrina
de “peculato-estelionato”. Aqui, a conduta do funcionário público
consiste em apropriar-se – apossar-se – de dinheiro ou qualquer
outra utilidade que, no exercício do cargo, recebeu por erro de
outrem. A pena para este delito é de um a quatro anos de reclusão,
e multa.
03. Conclusão.
O rol de compras inúteis, supostamente para
o fim social do Estado, que, na realidade, nada dizem respeito
ao dono do poder, o povo (artigo 1.º, parágrafo único, da CF),
é de estarrecer o mais simples dos mortais. Faz com que sintamos
vergonha de sermos honestos, parafraseando Rui Babosa: “De
tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se
os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude,
a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”.
Sob a nossa simplória
ótica, a “farra” dos governos com os cartões corporativos não
é apenas uma questão correcional que deve ser pautada pela Administração
Pública. Muito pelo contrário. Esse escândalo necessita, urgentemente,
de ser investigado pela Polícia, pois, pelo os elementos notórios
ou conhecidos por meio de maciça divulgação da mídia, há fortes
indícios da existência do delito de peculato (apropriação,
desvio ou subtração), sobretudo do peculato continuado.
Os portadores
dos mencionados cartões, milhares de servidores públicos, cujos
quais apresentaram algumas irregularidades, inclusive àquelas
extraídas do portal da Transparência Brasil, (7) devem ser indiciados (investigados) em inquérito policial,
bem como ouvidos pela “futura” Comissão Parlamentar Mista de Inquérito.
De igual forma,
o Ministério Público, que se diz dono da virtude de ser o “defensor
da sociedade”, deveria, no mínimo, instaurar inquéritos civis
– a teor do que dispõe o artigo 129, inciso III, da CF – para
também colher mais elementos de provas, tudo no intuito de ajuizar
as respectivas ações civis públicas e de improbidade administrativas
para restituir ao erário o que dele foi, supostamente, apropriado,
desviado ou subtraído por aqueles servidores que usaram irregularmente
os Cartões de Pagamentos dos respectivos Governos.
Tratar mais essa
questão, de aparente “corrupção corporativa”, em tese, que envolvem
partidos políticos e governos de vários níveis, somente no âmbito
administrativo, é, no mínimo, prevaricar. (8) Ou, ainda, reforçar a máxima
de que “governo não investiga governo, só os que não estão no
governo”.
Nos “governos
corporativos”, todas as pessoas têm o seu “cartão”, desde que
elas estejam alinhadas politicamente com o sistema. A maioria,
esmagadora, possui um limite de saque pífio. A minoria, privilegiada
e invejada, não tem limites.
Com efeito, parodiando
Caetano Veloso, (9)
“alguma coisa está mesmo fora da ordem nacional”. E fica, então,
no ar uma pergunta que não quer calar: como investigar o “escândalo
dos cartões corporativos”, se os altos saques em dinheiro, com
os mesmos cartões, efetuados pelos membros do Poder Judiciário,
do Ministério Público e dos órgãos correcionais e policiais estão
sendo criticados e podem, também, serem alvos das investigações?
(10)
Finalmente, o
peculato continuado (em tese), tipificação penal mais adequada
ao caso em testilha, parece que não cessará.
(1) https://conjur.estadao.com.br/static/text/63505,1
(2) https://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/02/07/materia.2008-02-07.1226590547/view
(3) https://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/01/31/materia.2008-01-31.2361913096/view
(4) In Comentários ao código penal. v. IX. Rio
de Janeiro: Forense, 1959. p. 334.
(5) Luiz Regis Prado e Cezar Roberto Bitencourt. Código penal anotado e legislação complementar.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 312.
(6) Júlio Fabbrini Mirabete. Código penal Interpretado. 6.ª ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 2379.
(7) https://www.portaltransparencia.gov.br.
(8) Art. 319
– Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício,
ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer
interesse ou sentimento pessoal: Pena – detenção, de três meses
a um ano, e multa.
(9) Fora da
ordem. Nome da composição.
(10) https://www.estado.com.br/editorias/2008/02/10/pol-1.93.11.20080210.1.1.xml