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O defensor não está restrito a tese do acusado no procedimento do Júri.
Edson Pereira Belo da Silva, advogado penalista, professor de processo penal e do Tribunal do Júri, autor de obras jurídicas, pós-graduado em direito, pós-graduando em Direito Penal e Econômico Europeu, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante ([email protected]).
01. Considerações iniciais.
Um dos mais sagrados princípios constitucionais que rege o procedimento do Tribunal do Júri é a plenitude de defesa, o qual está esculpido no artigo 5.º, inciso XXXVIII, “a”, da Constituição Federal. Esse princípio do processo penal constitucional é muito mais completo e perfeito do que o da ampla defesa, aplicável aos demais procedimentos processuais, e também previsto na mesma Carta Política (artigo 5.º, inciso LV).
Para o saudoso Professor José Frederico Marques, (1) plena é a defesa exercida com todos os meios e recursos que lhe sejam essenciais; e ampla é a que abrange esses meios e recursos, bem como outros, que, no caso do júri, estão intimamente ligados à instituição, como prerrogativa do réu.
O efetivo exercício do princípio da plenitude de defesa, em nosso sistema jurídico contemporâneo, é destinado ao acusado de praticar crimes dolosos contra a vida (artigo 121 a 127, do Código Penal), o qual é representado em juízo por uma defesa técnica exercida, exclusivamente, por defensor constituído (advogado de confiança do acusado), dativo (nomeado pelo juiz da causa) ou público (fornecido pelo próprio Estado-Acusador).
A renunciabilidade do direito de defesa não é permitida no nosso sistema jurídico vigente. Ainda que não queira exercer esse direito, o acusado não pode renunciar ao direito de ser defendido por um defensor (constituído, dativo ou público (2)). Aliás, a própria Lei Processual Penal, em seu artigo 261, reza que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. No mesmo passo, dispõe o artigo 8.º, 2, “e”, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, referendada pelo Decreto n.º 678/1992. E não é só isso, cabe ao juiz zelar pela qualidade da defesa técnica (artigos 261, caput, e 497, inciso V, do CPP). O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, editou a Súmula 523, asseverando que a falta de defesa no processo penal constitui nulidade absoluta.
Por sua vez, a Instituição Defesa (3) é constituída pela “defesa técnica” e pela “autodefesa”. A primeira modalidade de defesa é exercida por advogado ou defensor público, sendo estes indispensáveis à administração da Justiça, a teor dos artigos 133 e 134, da Carta da República e das Leis Complementar n.º 80/1994 e Ordinário n.º 8.906/1994. Já a segunda modalidade é desempenhada pelo próprio acusado, por meio dos seus interrogatórios tomados no inquérito policial e nas primeira e segunda fase do procedimento do Tribunal do Júri (artigos 6.º, inciso V, 185, 304 e 465, do CPP, respectivamente).
No exercício da Defesa, devem os seus atores – defensor e acusado – manter uma quase que perfeita harmonia entre as teses por eles erguidas, com o fim de se alcançar um resultado processual satisfatório para o defendido, diante da imputação grave constante do libelo-crime acusatório. Essa é a regra no processo penal: defensor e acusado dançam o mesmo tango e tocam o mesmo bolero.
Destarte, nem sempre essa desejada harmonia é alcançada ou possível dentro do Processo Penal do Júri. E aí as exceções àquela regra são várias. A análise das provas colhidas na fase policial e da instrução processual sempre nos conduz a duas ou mais teses.
02. Conflito de teses.
A tarefa do defensor, no processo penal, é mesmo impopular, desgastante e incompreensível aos olhos da opinião pública, mas gratificante para quem exerce este ministério, ainda que seja ele remunerado pelo erário ou pelo acusado a peso de ouro. Prevendo essas situações é que a Lei Federal n.º 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e a OAB) dispõe no seu artigo 31, § 2.º, que: “Nenhum receio de desagradar a magistrado ou a qualquer outra autoridade, nem de incorrer em impopularidade, deve deter o advogado no exercício da profissão”.
Francesco Carnelutti, (4) por seu turno, sempre lecionou que: ”A essência, a dificuldade, a nobreza é esta: sentar-se sobre o último degrau da escada ao lado do acusado. As pessoas não compreendem aquilo que de resto nem os juristas entendem; e riem, zombam e escarnecem. Não é um mister que goza de simpatia do público, ainda do Cirineu”. Realmente, ele tinha razão.
Os delitos da competência do Tribunal do Júri, sobretudo o homicídio (artigo 121, do CP) e todas as suas circunstâncias, até por uma força natural, tende a provocar uma repulsa na sociedade ou um clamor social. Contudo, isso tende a se agravar quando o caso desperta o interesse da mídia, que passa a pautar o caso pelo seu dever de bem informar. Desde o fato criminoso até a decisão do Conselho de Sentença, o caso é dirigido, redigido, ganha fases ou capítulos, atos, e sempre tem um grande final para a satisfação ou não da opinião pública.
Dentro desse contexto, a defesa técnica, com olhos de águia, passa analisar detidamente todas as provas produzidas (oral, documental, pericial, reconstituição ou simulação dos fatos), bem como busca produzir outras para consubstanciar suas teses ou confrontar àquelas já encartadas nos autos. Só então é que ela define as teses defensivas a serem defendias perante o Júri.
Entretanto, pode ocorrer uma dissintonia entre a defesa técnica e a autodefesa – exercida pelo acusado –, desde que a tese daquela venha conflitar com a tese eleita por esta. E aí é que reside à problemática. Estaria o defensor obrigado a sustentar ou restrito a tese argüida pelo acusado (negativa de autoria, legítima defesa, etc.) nos seus interrogatórios? A resposta não é taxativa, nem para o “sim” e nem para o “não”. Há que se ter razoabilidade e muita cautela para lhe dar com essa questão. Vejamos.
Vislumbrando o defensor que a tese do acusado não encontra qualquer sustentáculo nas provas produzidas, restando ela, portanto, isolada no processo, não está ele obrigado a defendê-la, senão àquelas que realmente encontre respaldo probatório nos autos, evitando assim, inclusive, o defensor de cair no ridículo.
Adriano Marrey, Alberto Silva Franco e Rui Stoco, (5) asseveram que: ”Pode ocorrer que, praticado um homicídio, ou um outro crime da competência do Júri o réu delibere a negar a sua autoria. Ao produzir-lhe a defesa, o advogado verifica que a negativa sustentada seria contra a evidência dos autos. Existindo, porém em favor do réu circunstâncias ponderáveis, capazes de levar o Conselho de Jurados a decidir por uma pena menos grave, deixa então o defensor de lado a assertiva do acusado e conduza a defesa tecnicamente, logrando o quê não se diria apenas relativo êxito, mas exato beneficiou ao réu, com a eventual desclassificação do delito para a forma simples, ou o reconhecimento de atenuantes”.
Conclui os eminentes doutrinadores: “Não haverá nenhum excesso, nem violação de ordem ética na conduta do defensor, ao qual compete no exercício do ‘munus’ da defesa, verificar o que mais convenha ao seu cliente. Em suma, deve-se, em ocorrendo tal hipótese, admitir-se que o advogado agiu bem, e sua defesa técnica teria de prevalecer, em prol do acusado, não obstante a vã negativa de autoria, pelo mesmo repetida”.
Outro respeitado doutrinador, Guilherme de Souza Nucci, (6) também leciona que: ”Não é demais observar poder haver discrepância entre o aventado pelo o réu e por seu defensor técnico. Este não é obrigado a sustentar uma tese que julgue incoerente, somente porque o réu a levantou em seu interrogatório. Fazendo as necessárias retificações, explanará aos jurados o que entende cabível para proporcionar ao seu cliente a ‘plena’ defesa”.
No entanto, em sendo possível sustentar também a tese criada pelo acusado, sempre com base no almanaque probatório, como, por exemplo, a “negativa de autoria” ou a “legítima defesa”, deve o defensor assim proceder, apresentando aos jurados as provas que sustentam tal tese, além é claro de defender àquelas em que ele efetivamente acredita existir melhores condições de prosperar.
Oportuno ressaltar, todavia, que só no caso em concreto é que o defensor poderá analisar a efetiva possibilidade de defender múltiplas teses, bem assim se elas são ou não colidentes ou divergentes. Essa situação é bem subjetiva, mas há que ser razoável, relembrando sempre que a “obrigatoriedade da defesa de acusado não corresponde à necessidade de se postular o impossível”. (7)
Como o defensor fala pelo o acusado, representa-o, ele pode expor a tese do réu (negativa de autoria, v. g.) e, de igual forma, dar uma maior ênfase a sua (desclassificação, por exemplo). Do outro lado, para que se evite ou se alegue eventual prejuízo à defesa só com a quesitação das teses do defensor, pode o juiz presidente quesitar a tese desenvolvida pelo acusado em seu interrogatório, alertando, no entanto, aos jurados, no momento da votação na sala secreta, que determinado quesito é tese do réu e não do seu defensor.
Isso porque, segundo Guilherme de Souza Nucci, o alegado pelo acusado não pode ser deixado de lado, sem a menor atenção, posto ter ele o direito de ser ouvido pelo juiz presidente e suas alegações precisam transformar-se em quesitos para a livre apreciação dos jurados. Não é porque, a primeira vista, sua narrativa é incoerente com a prova que merece ser desprezada. (8)
Quanto ao entendimento jurisprudencial, este é no sentido de que o defensor ao sustentar somente a tese ou teses que encontra respaldo no conjunto probatório – deixando de lado àquela criada pelo acusado sem o mínimo de prova – não deixa indefeso o cliente ou o assistido. Nesse sentido, são os julgados do Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça paulista:
STF: (9) “Se o defensor se convence, antes os elementos colhidos nos autos, de que a alegação de negativa de autoria não trará proveito ao acusado e adota outras teses defensivas, com eficiência e, no caso, até com êxito, não se pode dizer que o réu tenha ficado indefeso”.
TJSP: (10) “é incensurável a conduta de defesa deixando de encampar em plenário a tese de legítima defesa real esboçada pelo acusado em seus interrogatórios, depois da pronúncia e em plenário; para alegar a do privilégio da violenta emoção”.
A nosso sentir, o entendimento da jurisprudência não poderia ser diferente. É que o defensor reúne todas as condições técnicas e habilidade para bem defender o acusado ou assistido, de modo que, por vivenciar o caso em concreto, saberá ele decidir pela escolha das teses mais pertinentes e revestidas de provas. Nesse diapasão, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: (11)
“Habeas corpus – Recurso em sentido estrito – Conflito de vontades entre o réu e a defesa técnica – Interposição de recurso. Existindo divergência quanto à interposição de recurso entre o acusado e o seu defensor, prevalece à vontade do último, posto tratar-se de profissional preparado tecnicamente, com melhor domínio sobre a questão jurídica, com mais experiência e condições para decidir sobre a conveniência ou não da impugnação. Precedentes. Ordem concedida para cassar o v. acórdão guerreado”.
Saliente-se, igualmente, que, consoante o magistério do eminente Professor Hermínio Alberto Marques Porto, a inserção de quesitos defensivos no questionário do Júri incumbe à defesa técnica, ou seja, é dela essa iniciativa, tendo conta que a articulação do campo defensivo é matéria entregue ao advogado. (12)
Ainda nessa linha de pensamento, o insigne José Frederico Marques lecionava que “o réu não pode apresentar-se em plenário sem estar acompanhado de defensor perfeitamente habilitado a desenvolver, nos debates da sessão do Júri, todas as questões pertinentes à defesa”.
03. Conclusão.
Posta assim a questão, conclui-se que a defesa técnica prevalece sobre a autodefesa; de maneira que o defensor não está vinculado à tese erguida pelo acusado em seus interrgatórios, podendo ele, perante o Conselho de Sentença, sustentar livremente outras teses pertinentes ou mais coerentes com o acervo probatório existente no processo criminal em curso.
Pode, também, o defensor tentar conciliar a tese da autodefesa com a da defesa técnica, desde que possível, requerendo ao juiz presidente que quesite as teses de ambos para apreciação dos jurados, ressalvando o magistrado, quando da votação na sala secreta, que determinada tese (negativa de autoria ou legítima defesa, etc.) foi formulada pelo réu ao ser interrogado em juízo.
A efetividade da defesa técnica, por sua vez, está sob o “controle jurisdicional da eficiência da defesa”, cujo qual autoriza o juiz presidente, de forma motivada, declarar o acusado indefeso caso note que a linha defensiva foi completamente prejudicial ou ineficiente a ele, devendo, também, dissolver o Conselho de Sentença e designar nova data para o julgamento, além de conceder prazo para o acusado constituir novo patrono de sua confiança, pois, no silêncio, ser-lhe-á nomeado defensor dativo, caso não seja possível à atuação de defensor público.
O defensor está habilitado para o exercício pleno da defesa técnica. Como visto, essa é a presunção. Logo, deve ele, paulatinamente, construir em silêncio, de preferência, suas teses e produzir as provas que elas exigem, se for necessário, mesmo que o acusado (autodefesa) esteja insistindo noutra tese dissociada das provas existentes.
Toda e qualquer tese no Júri clama por, no mínimo, indícios suficientes de provas, os quais são capazes de gerar uma dúvida nos jurados. Sem elas, nenhuma tese prospera, e se prosperar contrariará as provas dos autos (artigo 593, inciso III, “d”, do CPP), levando o Tribunal de Justiça, em sede de apelação, a ter que anular o julgamento manifestamente injusto, determinando que outro se realize.
Importante enfatizar, finalmente, que os honorários recebidos do acusado não é uma garantia de absolvição e, muito menos, de que será defendia a tese que ele “bem entender ou determinar”. O advogado deve sempre manter viva e incólume à dignidade da Advocacia e a sua reputação. Aliás, o defensor não deve abrir mão da autonomia que possui no exercício do seu ministério, mesmo que esteja sendo remunerado a peso de ouro. Por isso, se depreender do conteúdo probatório penal a possibilidade de defender outras teses (desclassificação, inexigibilidade de conduta de diversa, erro de fato, erro de tipo, etc.), cujas quais poderão atingir um resultado menos penoso para o acusado, não deve hesitar, senão defendê-las efetivamente.
(1) A instituição do júri. São Paulo: Saraiva, 1963. v. 1. p. 301. Também sobre essa questão, Guilherme de Souza Nucci, em Júri: princípios constitucionais, 199, p. 140, assevera que a “defesa ampla é uma defesa rica, cheias de oportunidades, sem restrições; enquanto que a defesa plena é uma defesa absoluta, perfeita e completa”.
(2) Deixamos de incluir a figura do defensor “ad hoc” (para o ato) por acreditar não ser admissível que um defensor que desconhece completamente o processo em curso e, por vezes, a até a área penal, seja nomeado pelo juiz criminal apenas para ratificar um ou mais ato processual, que pode, inclusive, influir na condenação do acusado, tendo em vista a ausência das outras modalidades de defensores. Isso é abominável.
(3) “Defesa, em sentido amplo, é toda a atividade das partes no sentido de fazer valer, no processo penal, seus direitos e interesses, não só quanto à atuação da pretensão punitiva, como também para impedi-la, conforme sua posição processual”. Fernando da Costa Tourinho Filho. Processo penal. 26.ª ed. São Pulo: Saraiva, 2004. v. 2. p. 473.
(4) Em As misérias do processo penal. 2.ª ed. São Paulo: Bookseller, 2002. p.29.
(5) In Teoria e prática do júri: doutrina, jurisprudência, questionários, roteiros práticos. 7.ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 362-363.
(6) In Código de processo penal comentado. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 745.
(7) Entendimento exposto em julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, publicado na Revista JTJ 201/306.
(8) Ob. cit., p. 745.
(9) RE n.º 105.802-1-PR – Rel. Ministro Sydney Sanches, v.u. – RTJ 124/635.
(10) Rel. Dirceu de Mello, RT 700/312.
(11) HC 25.944/RJ, Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, QUINTA TURMA, julgado em 05.02.2004, DJ 28.06.2004 p. 355.
(12) In Júri: procedimento e aspecto do julgamento: questionários. 12.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 151.