(publicado no “site” www.conjur.com.br, em 13 de fevereiro de
2007)
Edson
Pereira Belo da Silva,
advogado, professor de processo penal, autor de obra jurídica, pós-graduado
em direito, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista,
conferencista e palestrante ([email protected]).
A
sociedade assistiu atônita mais um trágico capítulo do infindável
seriado “Guerra Civil Brasileira”, que nos apresentou na última semana
(de
Lamentamos,
profundamente, todos estes horrendos crimes, sobretudo o que vitimou
a criança. Mas, há que lamentarmos ainda outros delitos horríveis,
como, por exemplo, aqueles que resultaram no incêndio de um ônibus
coletivo (29 de novembro de 2005, cinco mortos) e outro de viagem
(29 de dezembro de 2006, sete mortos), o qual vitimou várias pessoas
que morreram carbonizadas. Para identificá-las, foi preciso fazer o exame
de DNA, depois que os parentes forneceram material para tanto. Por
coincidência, tais casos também foram no Rio de Janeiro. (2)
Contudo, quando a violência é extrema ou chocante, São Paulo não fica
atrás. Em 11 de dezembro último, no Município da Bragança Paulista,
uma família foi queimada dentro do seu próprio veículo (inclusive
a criança de cinco anos), após ser assaltada e seqüestrada. (3) Não nos
esqueçamos dos mais de cem ataques promovidos por determinada facção
criminosa, em maio de 2006, por todo Estado paulista.
Citamos
somente mais esses três fatos, comoventes, trágicos e recentes, para
demonstrar que nada parece mudar ou tem mudado, apesar do alto grau
das atrocidades ou monstruosidades urbanas reveladas nestes atos.
Do ponto de vista político-governamental, nem mesmo um fio de esperança
ou uma luz no fim do túnel.
O
que se tem na verdade, e há muito, são palavras ao vento (promessas),
advindas de todas as esferas de Governo.
No
entanto, o que mais indigna a sociedade é o oportunismo e, sobremaneira,
a hipocrisia política, que se aliam aos não poucos programas televisivos
(“exploradores da violência”) para propagar o endurecimento das penas
e a redução da menoridade penal.
A
retórica é sempre a mesma. Basta que determinados crimes hediondos
ganhem a opinião pública para alguns formadores de opinião e representantes
do povo, todos hipócritas, se juntem em um só coro para não reconhecer
as suas ineficiências ou erros, as suas substanciais contribuições
para o aumento da violência, enfim, que as suas opiniões estão na
contramão da efetiva política criminal.
Os
que pregam a ampliação da penas e a redução da menoridade penal deveriam
pregar no deserto. A questão é subjetiva e não objetiva, ao contrário
do que tentam demonstrar os hipócritas. Do jeito que as coisas caminham,
outros casos semelhantes ou mais horrendos voltaram a acontecer, e
eles retornaram com o mesmo discurso e com a mesma pompa.
A
hipocrisia é tamanha que até parece ser a Lei – figura meramente abstrata,
que necessita da ação humana para materializar-se – a única responsável
pelos inacreditáveis números negativos da violência, os quais superam
até mesmo números de Guerras reais. Poder-se-ia dizer que a Lei tornou-se
o “bode expiatório”: quando nada dá certo ou algo sai errado ela é
a culpada.
Mesmo
assim, alterando-se a Lei, revogando-a na sua integralidade ou substituindo-a
por outra mais dura, verificou-se que, no âmbito penal, a violência
não foi contida, sequer foi reduzidas a números aceitáveis pela Organização
das Nações Unidas. O exemplo maior disso foi a Lei dos Crimes Hediondos
(n.º 8.072/90). Atualmente, o cenário de violência é cada vez mais
desolador e alarmante, a ponto de milícias (poder paralelo) substituírem
as forças de segurança dos Estados.
Buscar
na suposta “fragilidade da lei penal” uma saída para tentar justificar
a própria incapacidade de gerir as relevantes atividades essenciais
do Estado é reconhecer, a nosso ver, que o Poder Legislativo continua
pecando como sempre e a criminalidade é mesmo organizada, conforme
as Leis assim adjetivaram (ns.º 9.034/95 e 10.217/01), ao passo que
o Estado, em matéria de segurança, é desorganizado.
Pena
morte, prisão perpetua, trabalhos forçados, etc., afloram das infinitas
inconsciências políticas quando a opinião pública se mobiliza para
reprovar determinadas ações delituosas hediondas. Quando um dos envolvidos
em tais crimes é menor de dezoito anos, regata-se do baú da hipocrisia
a diminuição da menoridade criminal. E assim ficamos com o mesmo enredo
ou com um samba de uma nota só.
Os
principais constitucionalistas, juristas, cientistas políticos, sociólogos,
jornalistas, clérigos e, sobretudo, o próprio Supremo Tribunal Federal,
já se manifestaram, reiteradamente, desaprovando qualquer mudança
normativa para reduzir a menoridade penal e majorar as penas. A problemática
não está na norma jurídica, mas na ausência de inúmeras políticas
corretas e eficazes dos governos de ontem e de hoje.
Substituir
o Ministro da Justiça, os comandantes militares ou os Secretários
da Segurança Pública das Unidades Federativas é tentar encontrar outro
responsável, ou responsáveis, pelo problema da insegurança generalizada.
A
impressão que temos é que enquanto a segurança pública for gerida
por amadores – ou por pessoas com o escopo de satisfazer os próprios
e os alheios interesses políticos em detrimento da sociedade, a qual
jurou bem servir –, o centenário “bloco da incompetência da segurança
pública” continuará desfilando no grupo especial do “carnaval da hipocrisia”,
cujo samba enredo é sempre o mesmo: “a lei inocente é culpada e os
políticos culpados são inocentes”.
E
o que nos chama mais a atenção é que parte considerada da sociedade
ou a sua maioria, tem caído nessa “hipócrita folia”, indo constantemente
às ruas e praças, devidamente paramentada, para exigir mudanças, quando
na realidade a própria sociedade não muda ou gosta de poucas mudanças.
Aqui, o adágio é outro: “Não se mexe em time que está perdendo”.
Talvez
seja por isso que o referido “bloco” não altera o tema para os próximos
desfiles carnavalescos na passarela dos hipócritas. É sempre o mesmo,
assim como os seus componentes.
Segundos
os números oficiais do Ministério da Justiça, por sua Secretaria Nacional
de Segurança Pública, existem no Brasil quase seiscentos mil policiais,
incluindo-se nessa estatística os bombeiros militares, exceto os guardas
municipais. (4) Se esse número é ou não
suficiente para combater a crescente criminalidade não vem exatamente
ao caso em tela, pois o que sempre se almejou foi qualidade e a efetividade
na prestação desse relevante serviço (direito) social que é a segurança,
conforme artigo 6.º, “caput”, da Constituição Federal.
Não
é endurecendo a legislação penal e muito menos punir os adolescentes
como adultos, ou ainda aumentar consideravelmente o efetivo das inúmeras
polícias que solucionaremos tormentosa questão. Ademais, a Carta da
República, em seu artigo 144, criou tantas polícias e guarda municipal,
bem como definiu as suas competências, que, apesar disso, ainda sim
sentimo-nos inseguros ou desprotegidos.
Importante
enfatizar, que o contingente da segurança privada no Brasil é o dobro
da segurança pública nacional. Segundo criterioso e substancial trabalho
do Centro de Estudo da Criminalidade e Segurança Pública da Universidade
Federal de Minas Gerais, divulgado em 2006, estão cadastrado na Polícia
Federal (órgão fiscalizador) 1.309,74 seguranças. (5)
Esse
aludido número só demonstra que a falta de zelo ou desinteresse pela
segurança pública, aliada a hipocrisia, é lucro certo para centenas
de empresários do ramo da segurança privada. Vale ressaltar, que muito
destes estão ligados à política e, principalmente, à segurança oficial.
A violência, portanto, interessa a alguns porque gera altos recursos.
Depois
da campanha do desarmamento e a extrema impossibilidade de se registrar
uma arma, já que o porte é restrito, passou-se a falsa impressão de
que a segurança melhoraria com tais medidas. Mas, por incrível que
possa parecer ou simples coincidência, a situação só se agravou. Não
se sabe ao certo se isso tem alguma relação de casualidade, porém
desperta atenção.
O
final de 2005 e todo ano de 2006 foram marcantes em relação à violência
urbana, sobretudo quanto ao controle do Estado por facção criminosa
organizada, cujos lideres encontravam-se presos. Atingiram-se números
jamais esperados.
Não
obstante, o ano de 2007 inicia-se da mesma forma que terminou 2006,
consoante mostramos nos primeiros parágrafos deste artigo: muita violência
gratuita e quase nenhuma perspectiva de combate e controle efetivo
da criminalidade. A responsabilidade por isso sequer pode ser divida
com o Poder Judiciário, o qual tem condenado severamente, negado quase
que todos os recursos penais, “hábeas corpus” ou pedido de liberdade
provisória, revisões criminais, etc. há uma ou outra distorção aqui
ou ali, mas nada que permita dizer ser a Justiça responsável. Ela
não faz as leis, apenas aplica-as.
O
Judiciário do Estado de São Paulo, notadamente os magistrados das
Varas e Câmaras Criminais (primeira e segunda instância respectivamente),
é tido como um dos mais rígidos na aplicação da pena, tanto que muitos
defensores apelidaram determinadas Câmaras Criminais do Tribunal de
Justiça paulista como “Câmara de Gás”.
É claro que a aplicação do princípio da proporcionalidade
da pena, há muito, deixou de ser uma simples discussão doutrinária
para se tornar uma preocupação da própria Justiça, tendo em conta
o elevado número de processo penais originários do notório aumento
da violência, sendo boa parte destes feitos criminais de acusados
reincidentes. Lembremos que não é o Judiciário o Poder competente
para recuperar os condenados à pena privativa de liberdade.
Assinale, todavia, que não estamos fazendo uma espécie de defesa do Poder
Judiciário, senão uma observação essencial de que o Poder Executivo
e Legislativo são os principais, ou únicos, atores desse infindável
seriado “Guerra Civil Brasileira”, que nada fica a dever ao filmes
de terror do famoso cineasta britânico, Alfred Hitchcock.
Tanto
é político o problema da segurança pública, que ex-Secretário Nacional
da Segurança Pública, cientista político Luiz Eduardo Soares, em entrevista
ao “site” da BBC Brasil, (6) em 02
de agosto de 2004, foi categórico ao asseverar que o governo federal
“evita se envolver com a questão, já que constitucionalmente a segurança
pública é de responsabilidade dos Estados”.
Destarte,
causa repulsa a seguinte observação feita pelo mencionado ex-Secretário
na sobredita entrevista: “Dado que há uma concepção fatalista de que
esse tema não se resolve e é apenas fonte de desgaste, o presidente
prefere deixá-lo para os governadores, e lavar as mãos”. “Se
o presidente chama o problema para si e se engaja no plano (nacional
de segurança pública apresentado na campanha), ele estará assumindo
a responsabilidade. É um risco muito grande, mas, sem assumir esse
risco, não teremos mudança.”
Luiz
Eduardo Soares permaneceu no cargo que ocupou somente por 10 meses.
Portanto,
percebe-se que o enfrentamento do problema que há décadas nos atormenta
profundamente, está longe de ser prioridade para os nossos representantes.
Para eles é muito mais cômodo e salutar utilizar o discurso da hipocrisia,
prometendo substanciais modificações na lei penal e, por vezes, mais
recursos para a área de segurança.
Aprovar
um pacote de leis penais ou liberar verbas, até então contingenciadas,
no momento delicado em que a sociedade indignada está exigindo severas
punições para os últimos acontecimentos atrozes, é mostrar que pouco
se pode fazer ou tem sido feito e que não existe plano algum para
conter a progressão da violência.
(1) Noticia publicada no “site” www.oglobo.globo.com.br,
em 07 de fevereiro de 2007.
(2) Noticia publicada no “site” www.estadao.com.br, em 29 de dezembro de
2006, Caderno Cidade. Vide
também www.folha.com.br/codidiano,
de 30 de novembro de 2005.
(3)
Noticia publicada no “site” www.estadao.com.br, em 12 de dezembro de
2006, Caderno Cidade.
(4) Dados colhidos no “site” www.mj.gov.br/senasp/estatistica/efetivo.
Estatísticas publicadas em agosto de 2004.
(5) Monografia de Fernando da Cruz Coelho, intitulado “Analise
Institucional da Segurança Privada: Um Estudo Comparado”. p. 33.