(publicado no “site”
www.oabguarulhos.org.br,
em 18 de abril de 2007)
Se não
bastasse a ânsia desenfreada de se criar novas leis para tentar coibir
a criminalidade e reduzir a menoridade penal, no intuito exclusivo
de se dar uma resposta apressada a grita da população, notadamente
aos eleitores, os aludidos representantes popular lançaram, já há
algum tempo, a idéia de que “é preciso alterar à Constituição Federal
para dotar os Estados de competência para legislar em material penal
ou em segurança pública”, sob o engenhoso argumento de que cada uma das 26 Unidades Federativas, mais
o Distrito Federal, possui realidades bem diferentes”.
Com trágico
episódio criminoso ocorrido em 7 de fevereiro de 2007, do qual foi
acometido fatalmente o menino João Hélio Fernandes, (1) reacendeu-se a proposta
É sabido
que à União compete, privativamente, legislar sobre direito penal,
civil, comercial, trabalho, eleitoral, processual, agrário, marítimo,
aeronáutico e espacial, segundo dispõe o artigo 22, inciso, da Carta
da República; de modo que, para se alcançar essa hipócrita e utópica
idéia, faz-se necessário alterar o texto constitucional mediante a
provação da respectiva Emenda. Para tanto, a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) precisa ser discutida – intensamente – e votada em cada uma
das duas Casas do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se
aprovada caso obtenha, em ambas, três quintos dos votos de seus respectivos
membros (artigo 60, “caput”, e § 2.º, da CF).
Vale ressaltar,
contudo, que a promulgação da Emenda aprovada é feita pelas Mesas
da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, observando-se o respectivo
número de ordem (artigo 60, § 3.º, da CF). Neste processo legislativo
apenas cabe ao Presidente da República apresentar a PEC (artigo 60,
“caput”, inciso II, da CF), além é claro de, naturalmente, exercer
as influências políticas do cargo que ocupa, tanto em prol como contra
a PEC, caso não tenha sido ele que a apresentou, bem assim mobilizar
sua bases de apoio no Congresso Nacional conforme seu objetivo.
Portanto,
o primeiro passo para tornar real a pretensão do atual governador
do Rio é apresentar uma PEC ao Congresso; daí em diante é só fazer
política no intuito de tentar aprová-la. Qualquer intenção de determinado
ente federativo de legislar em matéria que foge de sua competência
configura grave ofensa à Magna Carta, cuja qual deve ser reparada
por ação direita inconstitucionalidade, com pedido de liminar, ajuizada
perante o Supremo Tribunal Federal (artigo 102, inciso I, alínea “a”,
da CF, e Lei n.º 9.868/99).
Importante
observar, todavia, que a Lei Complementar federal poderá autorizar
os Estados-membros a legislar em matéria penal e processual penal
(artigo 22, parágrafo único, da CF) relacionada a questões específicas,
que tenham tão-somente interesse local, sem que, com isso, venham
a modificar matérias fundamentais dos Códigos Penal e de Processo
Penal.
Trata-se,
na realidade, da conhecida competência legislativa suplementar, que
pode ou não ser delegada através da citada norma. Em outras palavras,
a competência é privativa da União, como visto, porém ela pode ser
delegada mediante lei. Destarte, desde que promulgada a Constituição
vigente, o Congresso Nacional ainda não editou Lei Complementar delegando
competência legislativa em matéria de sua competência privativa, especialmente
a penal; de sorte que continuaram os Estados e Distrito Federal padecendo
de legalidade e legitimidade para legislar até a edição de tal norma.
Caso a
União delegue a mencionada competência legislativa a um determinado
ente federativo, por força do princípio da igualdade federativa, é
obrigada a estender também aos demais entes federativos a mesma competência
legislativa. (3)
Se o Rio, por exemplo, obter a “graça” desejada, os outros Estados,
certamente, irão reivindicá-la. Não custa enfatizar que as Unidades
Federativas, num passado distante, já possuíram competência para legislar
em várias outras matérias (ver artigo 63, (4) da Constituição Federal de 1891).
Mas, a
nosso pensar, a sobredita mudança do texto constitucional pretendida
pelo governador fluminense ou a edição da aludida Lei Complementar
federal, além de ser uma tarefa quase impossível, do ponto de vista
de reunir e convencer os parlamentares em torno de tal proposta, não
deve mesmo prosperar.
Com a
devida vênia, o atual Chefe do Poder Executivo do Estado do Rio de
Janeiro ainda não se deu conta de que o Brasil não é os Estados Unidos
da América, e vice-versa, por inúmeros fatores, apesar deste último
ser considerado uma Federação. (5)
O sistema federativo em sua simplicidade, segundo o ensinamento do
preclaro Dalmo de Abreu Dallari, consiste numa aliança ou união de
Estados, baseada
Importar
o sistema norte-americano ou tê-lo como um referencial em nosso território
é lamentável. Só faltou pensar em consultar os legisladores americanos.
O simples fato de cada um dos 50 Estados norte-americano legislar
em múltiplas matérias não os tornaram justos, não impediram as aberrações
jurídicas e atentados aos direitos civis, etc., cujos quais ainda
estão frescos na mente da comunidade jurídica internacional. Note-se,
por exemplo, o tratamento desigual dado aos afro-descendentes. A luta
racial ainda não terminou naquele país, sendo que
Vejamos
um caso concreto: nos anos 60, alguns Estados vedavam o casamento
ou a união interracial, a ponto de ser uma infração penal. Estas leis
estaduais duraram por muitos anos, até que a Suprema Corte Americana,
após analisar por quase 8 anos medida judicial que impugnavam àquelas
legislações discriminatórias, revogou todas elas. O filme “Quebrando
as Regras”, de 1998, baseado em fatos reais, retrata com fidelidade
esses fatos.
Quando
nos posicionamos contrários à estadualização na norma penal – ou até
mesmo outra matéria de competência privativa da União –, voltamos
os nossos olhares para a falta de recursos e estrutura dos entes federados
e sobremaneira, para a “moralidade política” da grande maioria dos
nossos representantes políticos, no Congresso Nacional, nas Assembléias
Legislativas e nas Câmaras Distrital e de Vereadores.
Essa ausência
de moralidade é reconhecida “interna coporis”. Só para lembrarmos,
em debate realizado pela TV Câmara, no dia 29 de janeiro último, com
os três candidatos à Presidência da Câmara dos deputados, um deles
disse com veemência: “Temos que sair das páginas policiais” (“ipsis
litteris”). (8) Se o próprio parlamentar está preocupado com
a questão negativa que ele destacou, então o quê deve preocupar o
povo brasileiro?
Os parlamentos
dos entes federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios), na
sua quase totalidade, estão desacreditados pela população e por muitos
dos seus próprios membros. O parlamentar, atualmente, é visto com
muita desconfiança, em especial por deixar transparecer ter perdido
sua principal função: representar o interesse da sociedade. E a crise
no Poder Legislativo parece não ter fim.
Diante
desse quadro político-legislativo desolador, de que forma dar ou delegar
competência para determinado ente federado?
Não obstante,
se em Brasília as coisas vão de mal a pior, em vários sentidos, mesmo
com a intensa e eficaz cobertura da mídia, como será então que andam
as coisas nos entes federativos de baixa expressão política ou escassa
notoriedade no cenário nacional?
Em quase
todos os Parlamentos dos membros federativos, governadores e prefeitos
“fazem à festa”, ou seja, conseguem aprovar o que bem entender, quando
e como. “Verbi gratia”: há alguns anos, faleceu na capital federal,
de morte natural, um importante deputado baiano (ex-presidente da
Câmara), cujo pai dominava politicamente o seu Estado de “fio a pavio”.
Para homenagear a memória do filho falecido o citado genitor consegui:
(i) alterar o nome de Aeroporto Internacional Dois de Julho (data
de independência da Bahia) para o nome do “de cujus”; (ii) criou um
Município com o nome do filho, através da Lei estadual n.º 7.619/2000,
a qual é objeto da Ação Direita de Inconstitucionalidade n.º 2440,
ajuizada perante o STF; (9) (iii) também criou uma Fundação e uma Rodovia com o
mesmo nome: (iv) modificou os nomes das principais Avenidas, Ruas,
além das escolas, hospitais, etc. Tudo isso para endeusar e eternizar
o nome de um pobre mortal, com a total complacência das Assembléia
Legislativa do Estado e de inúmeras Câmaras de Vereadores (ambos entes
federados), que se encarregaram somente de aprovar todas essas “leis
relevantes para a sociedade”. Esses são apenas alguns dos desmandos
que, não é de agora, já ocorrem igualmente pelo Brasil afora.
Por outro lado, há
que se destacar o estado de miserabilidade da grande maioria dos entes
federados, os quais vivem peregrinando por Brasília atrás – de um
tostão – de uma verba suplementar ou adicional. O Estado de Alagoas,
por exemplo, parece só existir nos mapas brasileiros e na sua Constituição,
pois, há muito, está completamente falido, sem sequer poder as necessidades
básicas de sua população. O Congresso Nacional já tinha conhecimento
disso, tanto que um dos poucos senadores considerados, Jefferson Peres,
fez a seguinte observação em seu um dos seus pronunciamentos no Senado:
”O Estado de Alagoas faliu, está literalmente
Oportuno ainda ressaltar
que, além da notória ausência de recursos financeiros, que impedem
a materialização dos direitos sociais (artigo 6.º, da Constituição
Federal) de seu povo, quase a totalidade dos membros da Federação
padecem com uma política retrograda, ineficiente, nepotista, autoritária,
injusta, com serias dificuldades de cumprir e fazer cumprir a lei.
É comum ouvir em muitos dos Estados e Municípios a seguinte expressão:
“Aqui quem manda é fulano de tal ou a família de cicrano”.
Vale dizer, que a
maioria desses entes federados possui uma espécie de “mandatário”,
como vimos no exemplo citado no Estado da Bahia, o que indubitavelmente
comprometeria – e já compromete – a independência das Assembléias
Legislativas, que, assim como no Congresso Nacional, não conseguem
punir nem mesmo seus próprios membros.
Com a considerável
influência política que sofre os legislativos estaduais, qualquer
questão polêmica poderia ser facilmente aprovada, como, “verbi gratia”,
o aborto, a descriminalização do porte de substancias ilícitas entorpecentes
para consumo próprio, redução da menoridade penal, ampliação da impunidade
nos crimes políticos, etc. De maneira que, em cada membro federativo,
teríamos uma legislação penal própria e de acordo com as suas realidades
ou tradicionalismo regionais.
A “briga de galo”
e o “jogo do bicho”, assinale, seriam liberados
Gostemos ou não, a
verdade é que a grande parte dos entes federativos é frágil nos aspectos
político, econômico, educacional, enfim, carecem de amplo desenvolvimento.
E sob essas reais condições como seriam a sua legislação penal ou
processual penal, já que convivem com inúmeras diferenças sociais?
Como seria, por exemplo, a legislação penal aprovada nos Estados de
Roraima e Amapá, antigos territórios (artigo 14, do adct,
da CF), em comparação com as Unidades Federativas das Regiões Sul
e Sudeste?
Para nós, a uniformidade
das legislações básicas (penal, civil, processual, etc.) para todos
os entes, como ocorre, possui é claro algumas distorções, as quais,
paulatinamente, podem ser corrigidas por que inexiste sistema normativo
perfeito; do contrário, liberar a produção legislativa para cada membro
da Federação é estabelecer o caos jurídico no país.
É preciso também despertar
para o fato de os Municípios – entes federados, artigo 1.º, “caput”,
da CF – também almejarem legislar nas matérias em que os Estados,
eventualmente, venham adquirir competência, posto prevalecer, consoante
frisamos acima, o princípio da igualdade federativa, onde um ente não pode ser preterido pelo outro no
julgo do Estado Federal. Bom, se em relação aos Estados a questão
é praticamente impensável, então o que dizer com respeito aos Municípios?
O Poder Judiciário
dos Estados, por sua vez, a quem caberia aplicar eventual lei penal,
ou outras, aprovada pelos entes federativos, “enlouqueceria” com o
efetivo controle das mais inusitadas normas jurídicas, haja vista
a perda significativa da qualidade dos textos legislativos, por vezes
intencional. E essa preocupação não é pra menos, dado que os textos
das Leis aprovadas no Congresso (que reúne representantes de todos
os membros federativos) apresentam substanciais deficiências, inclusive
gramatical.
Sob essas singelas
observações, temos que a vontade do governador do Rio de atrair para
os Estados mais poderes ou competência, sobretudo para legislar em
matéria penal, é tão-somente ideológica e no momento de manifesta
comoção social, quando os políticos tentam, sem sucesso e a todo custo,
mostrar serviço. Além do que, tendo em conta a elevação do índice
da corrupção e das várias outras espécies de crimes, a ampliação ou
delegação suplementar de competência para os entes federados poderá
servir a outros interesses que não aqueles da população, conforme
tem mostrado bravamente a mídia, principalmente.
(1) Noticia publicada no “site” oglobo.globo.com.br, em 07
de fevereiro de 2007.
(2) Ver www.oglobo.globo.com/rio/ancelmo,
em 20 de fevereiro de 2007.
(3) “Vide” Alexandre
de Moraes,
“Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional”.
São Paulo: Atlas, 2002. p. 680-681.
(4) “Cada Estado reger-se-á pela Constituição e pelas leis que
adotar respeitados os princípios constitucionais da União”. Texto
disponível no “site” www.presidencia.gov.br/legislação.
(5) Ver Professor Roberto Romano,
em artigo denominado “Passado, presente e futuro da universidade
brasileira”, publicado no “Jornal da Unicamp”, Edição 339,
(6) “Elementos de teoria geral do estado”. 11.ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1985. p. 227.
(7) Themostocles Brandão Cavalcanti. “Manual da constituição”. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1977. p. 62.
(8) Notícia veiculada no “site” www.congressoemfoco.ig.com.br,
em 20/01/2007.
(9) Informação veiculada no www.conjur.com.br, em 07/07/2000.
(10) Pronunciamento completo. Senado Federal. 12/08/1996.