(publicado no site www.conjur.com.br,
em 26 de novembro de 2007)
Edson Pereira Belo da Silva, advogado, professor de processo penal, autor de obras jurídicas inéditas,
pós-graduado em direito, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola
Superior de Advocacia, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP,
articulista, conferencista e palestrante ([email protected]).
01. Considerações
iniciais.
O então deputado federal pelo Estado da
Paraíba, Ronaldo José da Cunha Lima, renunciou ao mandato – que exerceria
na legislatura 2007/2011 – no dia 30 de outubro de 2007, (1) portanto alguns dias antes
do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgar a Ação Penal
n.º 333 em que ele, agora ex-parlamentar, é acusado de tentar contra
a vida de Tarcísio Buriti, um suposto inimigo político, fato esse
ocorrido em 5 de novembro de 1993. No pedido
de renúncia, que é irrevogável, o ex-deputado manifestou expressamente
a vontade de ser julgado pelo Tribunal Popular do seu Estado natal,
sendo esse o motivo primordial para ter renunciado de “última hora”.
Renunciar ao mandato para evitar a perda
dos direitos políticos (ser “cassado”) tem sido uma constante nos
parlamentos brasileiros (federal, estadual e municipal), sobretudo
quando as provas são contundentes ou o parlamentar acusado não tem
força política suficiente para impedir a cassação do referido mandato.
Com isso, todos os elementos de provas coligidos contra o agora ex-parlamentar
são remetidos ao Ministério Público, o qual adotará os procedimentos
legais pertinentes ao caso.
Em sentido oposto, e comum, muitos ex-políticos,
que respondem a processos na primeira instância do Judiciário, buscam
conquistar um mandato eleitoral nos Poderes Executivos ou Legislativos
das três esferas de governo somente com o escopo de ver deslocada
para o Tribunal respectivo (STF, STJ, TJ) a competência para julgar
os processos penais dos quais são acusados de praticar os mais variados
delitos. Assinale-se, contudo, que dentre os cargos eletivos apenas
o de vereador,
Na situação em cotejo, o ex-deputado paraibano,
depois de ver hibernar por 14 anos nas Cortes Superiores (STJ e finalmente
STF) a Ação Penal que responde pela suposta pratica de crime doloso
contra a vida, na modalidade tentada, de competência do Tribunal Popular,
decidiu renunciar o mandato para ver-se julgado pelo Júri da Comarca
de João Pessoa – PB, para onde será remetido todo o processo penal,
caso a Corte Suprema não se dê por competente.
Alega-se que o ex-parlamentar, ao renunciar,
“abusou do direito”. Há quem dissesse também que “O ato dele
é um escárnio para com a Justiça brasileira em geral e para com o
Supremo em especial”.
Para o ministro do Supremo Tribunal, Joaquim
Barbosa, que relata a aludida Ação Penal, “uma vez definida a data
de julgamento do processo, como ocorreu na ação penal contra o ex-parlamentar,
não caberia ao réu mudar a instância judicial competente para julgá-lo”.
(2) Já o ministro Aires Britto,
da mesma Corte constitucional, sustentou que, sem dúvida alguma, o
parágrafo 4.º, (3) do artigo 55, da Constituição Federal
foi pensado para impedir tal abuso. Isto é, a renuncia do mandato
estaria suspensa.
Como visto, da simples renúncia de um deputado
federal, a Suprema Corte pode, finalmente, reconhecer que a competência
do Tribunal do Júri prevalece sobre a do foro por prerrogativa da
função. Do contrário, poderá o STF abrir um perigoso precedente para
que ex-autoridades (parlamentares, ministros, governadores prefeitos)
possam requerer que seus processos penais em tramite na primeira instância
sejam remetidos para lá, já que o Supremo Tribunal insiste em julgar
ex-parlamentar.
02. Prevalência
da competência do Tribunal Júri, que é o autêntico juiz natural para
processo e julgar os crimes dolosos contra a vida.
O Supremo Tribunal Federal, por seu Pleno,
tem uma grande oportunidade de corrigir um dos maiores equívocos jurídicos,
a nosso ver, no que concerne o conflito de competência entre o Júri
e o foro por prerrogativa da função quando o delito praticado é doloso
contra a vida. em outras
palavras, se um cidadão comum matar alguém será ele julgado pelo Tribunal
Popular (artigo 5.º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da CF); ao passo
que se um deputado federal ou senador da República praticar o mesmo
delito caberá ao STF processá-lo e julgá-lo (artigo 102, inciso I,
alínea “b”, da CF).
Apesar da Constituição Federal prevê o foro
por prerrogativas da função para inúmeras autoridades (membros do
Poder Judiciário e do Ministério Público, presidente, governador,
prefeito, deputado federal, senador, ministro, conselheiro dos Tribunais
de Contas, chefes de missão diplomática de caráter permanente e os
comandantes da Marinha, Exercito e Aeronáutica), não ficou consignado
em nenhum dos seus dispositivos referentes a tal foro que os “crimes
dolosos contra a vida” também seriam julgados pelo Tribunal togado
respectivo.
É claro que hão de pensar que, de igual
forma, não se vedou aqueles Tribunais togados de processar julgar
os delitos do Júri em razão do foro privilegiado. Mas, a nosso sentir,
a competência do Tribunal do Popular não poderia ser afastada em nenhuma
situação, sobremaneira por se tratar de uma garantia constitucional
individual, (4) tanto que ela não pode
sequer ser objeto de proposta de Emenda Constitucional (artigo 60,
§ 4.º, inciso iv, da
CF).
O Texto Fundamental é bem claro: cabe ao Tribunal do Júri julgar os crimes dolosos
contra a vida. Logo, qualquer cidadão, indistintamente, goza desse
princípio garantista, do qual sequer pode renunciar; de modo que tal
princípio não pode ser afastado ou desprezado pelo simples fato de
ter determinada pessoa galgado um mandato eletivo, ingressado na magistratura
ou no Ministério Público, etc. e, com isso, alcançado um foro mais
específico, o foro por prerrogativa de função.
A Suprema Corte Federal já deu mostra de
que deve mesmo prevalecer à competência do Júri ao editar a Súmula
721, cuja qual está assim redigida: “A
competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro
por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição
estadual”.
Destarte, continua
o STF entendendo, até aqui, ser constitucional o foro por prerrogativa
de função, em detrimento da competência do Júri, quando previsto na
Constituição da República, ou seja, todas as autoridades estatais
(13 ao todo) cujo foro privilegiado esteja previsto na referida Carta
Política Federal, ainda que sejam elas acusadas de delitos dolosos
contra a vida, serão julgadas pelos Tribunais togados respectivos
(STF, STJ e TJ), pois ambas as competências (dos Tribunais popular
e togado) são definidas pela Lei Maior.
Vale dizer, portanto,
que a competência do Tribunal Popular não é absoluta, (5)
cedendo esta àquela dos Tribunais togados – que também foi fixada
pela mesma Constituição Federal – para julgar determinadas autoridades
públicas.
Em que pese o
posicionamento do Tribunal constitucional, privilegiando duplamente
os já privilegiados, dado que não são todos que conseguem exercer
um relevante cargo público e com foro especial, não existe qualquer
razoabilidade em afastar do julgo dos magistrados popular as aludidas
autoridades acusadas de praticar crimes dolosos contra a vida.
E com o devido
respeito à posição da nossa Corte Suprema, a qual tem prestado substanciais
serviços à nação, não é preciso invocar o imortal Rui Barbosa para
sustentar tal ausência de razoabilidade.
Quando o legislador
constituinte de 1988 entregou ao Júri o objeto jurídico vida (artigo
5.º, “caput”, da CF), tornando-o, assim, competente para julgar todos
os delitos dolosos contra a vida, quis ele que o povo, exercendo direitamente
poder (artigo 1.º, parágrafo único, da CF), fosse o único a julgar
os acusados de violarem valioso bem jurídico. Do contrário, teria
posto uma ressalva, em alguma parte do dispositivo de regência (inciso
XXXVIII, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do artigo 5.º, CF), mencionando
que não se submetem ao julgo do Tribunal Popular àquelas autoridades
que usufruem do foro por prerrogativa de função (“imortais”).
Mas, essa ressalva
não veio expressa nem no Título I e, muito menos, nos demais Títulos
da Carta Política em referência, restando aos Tribunais, mais especificamente
o STF, que o guardião da Constituição, interpretar essa “questão de
ordem” de natureza constitucional como há muito vem fazendo, por vezes
de forma mais política do que jurídica.
Dessa forma,
sob a nossa ótica, a competência do Tribunal do Júri é absoluta por
ser ele o único juiz natural previsto no rol das garantias constitucionais,
não estando incluso no elenco do artigo 92, da CF, como órgão do Poder
Judiciário. Ademais, essa mesma competência também é “mínima”, (6) uma vez que pode ser ampliada
para julgar outros delitos, tanto é assim que já julga os delitos
conexos (homicídio + ocultação de cadáver).
Rogério Lauria
Tucci, renomado processualista, enfatiza em magistério de fôlego (7)
que o Júri é o “’tribunal natural’ para o processamento final das
causas penais referentes aos ‘crimes dolosos contra a vida’, no âmbito
da Justiça Criminal comum, que integra, e com a obvia exclusão
de qualquer outro órgão judicante” (grifo nosso).
Emerge-se, ainda,
um outro valoroso e indispensável fundamento para alicerçar o nosso
simplório entendimento, qual seja: o Júri é um Tribunal composto
por pessoas povo, tidas como leigas e que julgam segundo as vossas
íntimas consciências (ouvem as exposições das partes e decidem secreta
e soberanamente), sem ter qualquer contato político externo.
Por sua vez,
os Tribunais togados sofrem todo o tipo de “assédio político” das
autoridades com foro especial – cafés, almoços, jantares, encontros
em eventos turísticos ou de lazer, etc. – que ali são acusadas, além
de visitas dos seus procuradores; ao passo que os membros do Conselho
de Sentença não experimentam isso, porque é formado ele no dia do
julgamento final, não podendo, sequer, discutir o caso entre si, antecipar
votos, voltar atrás de sua decisão, o que é comum acontecer nas Cortes
togadas.
Como se vê, o
julgamento pelo Tribunal Popular dos crimes de sua competência, assim
pretendido pelo legislador constituinte, é muito diferente daquele
realizado pelas Cortes togadas, o que, sem dúvida alguma, agride novamente
a garantia constitucional do “devido processo legal”, a qual foi ofendida
inicialmente quando se deixou de observar o Júri como “o juiz natural”
para julgar todos os acusados de delitos dolosos contra a vida.
Oportuno assinalar,
nesse passo, que os maiores interessados no foro privilegiado – a
classe política – em momento algum tentaram alterar a Constituição
Federal, via Emenda Constitucional, para fazer constar que o mencionado
foro especial prevalece sobre a competência do Júri, isto é, mesmo
se fosse praticado um crime doloso contra a vida, ainda sim prevaleceria
à competência do Tribunal togado respectivo.
De fato, não
houve necessidade de o Congresso Nacional fazer o seu papel, exercer
a sua função precípua (legislar), posto ter o Supremo Tribunal Federal
interpretado a Lei Maior politicamente, em detrimento do Tribunal
Popular, que passou a julgar tão-somente pessoas “mortais” ou comuns,
tendo limitada ainda mais a sua competência constitucional justamente
pelo seu guardião: o STF.
Se todo o poder
emana do povo e por ele é exercido diretamente ou por meio de representantes
(artigo 1.º, parágrafo único, da CF), não pode nenhum Tribunal togado
dizer ao povo que ele (Júri) não
pode julgar as autoridades públicas cujas quais, legítima e juridicamente,
constituíram para representá-lo.
A exegese feita
pelas Cortes togadas em sentido contrário, retira ou retirou do povo
parte do poder que seus representes, eleitos diretamente, fizeram
constar logo no artigo 1.º da Carta Política, bem como no inciso XXXVIII,
do seu artigo 5.º. Isso nos levar a imaginar que o povo só tem competência
para votar, pagar tributos e padecer com as mazelas da Justiça, sendo
alijado do direito de exercer o seu poder diretamente no Tribunal
do Júri, julgando todos aqueles, inclusive os magistrados togados
que forem acusado de praticar um dos crimes de sua competência da
Corte Popular (vide artigos
03. Da garantia
constitucional de ser julgado pelo povo.
No caso do ex-deputado, Ronaldo José da
Cunha Lima, inicialmente, não há o que se criticar, quando ele simplesmente
fez uso da Lei, como tantos outros fizeram no passado, mas por outros
motivos. Em outros termos, se a norma posta admite a renúncia do mandato,
não cabe censurar quem a usa.
O STF tem a grande oportunidade de começar
a colocar um basta na “festa do foro privilegiado”, dando ao Júri
todo o crédito que ele merece para julgar os delitos contra a vida
eventualmente praticados por aqueles que possuem foro especial. A
resposta da Corte constitucional deve ser democrática, razoável e
atender o interesse do povo, e não revestida de “revanchismo” ou “vingança”
só pelo fato de se ter renunciado ao mandato eletivo para não ser
julgado pelo Plenário do Tribunal Supremo.
Essa teratologia ou esse “Frankenstein”
moderno nascera da jurisprudência dos Tribunais togados, cujos membros
têm pavor de ser julgados pelo magistrado popular, daí continuarem
mantendo o foro privilegiado mesmo para quem não quer mais o privilégio,
inclusive para autoridade acusada de matar um cidadão inocente.
Ora, data vênia, não se pode obrigar um
cidadão (acusado ou não) a permanecer com o foro especial e, por conseguinte,
no cargo eletivo se ele não o deseja mais. A tendência é extirpar
o foro por prerrogativa de função, porque o povo clama por isso, e
não criar obstáculos, por via da hermenêutica, para que o ex-parlamentar
permaneça atado ao foro do qual ele abriu mão, espontaneamente.
Mais uma vez, com o devido respeito, um
julgamento não pode se eternizar num só Tribunal. Em regra, o processo
leva vários anos para ser concluído, passando por duas instâncias
e Cortes Superiores. Pelo que se sabe, só
O julgamento no STF não pode ser eterno,
sobretudo pela impossibilidade de ser recorrer de suas decisões, haja
vista ser esta Corte originária o único e último juízo natural para
julgar deputados federais (artigo 102, inciso I, alínea “b”, da CF).
Não obstante, a Corte Suprema não pode abrir
um precedente para ex-autoridades. Isso certamente ocorrerá, caso
referido Tribunal decida manter a sua competência para julgar a Ação
Penal n.º 333 contra o ex-parlamentar que renunciou o mandato em caráter
irrevogável.
Como o STF não pode revogar a renúncia e
restabelecer o mandato então renunciado, terá que escolher uma das
duas possibilidades: (i) deixar o Tribunal do Júri da Comarca de João
Pessoa – PB julgar o seu semelhante e ex-representante político, como
quer o próprio renunciante; (ii) ou manter o julgamento do feito penal
na Corte, criando um precedente para dezenas ou centenas de pedidos
de ex-autoridades que respondem a processos penais na primeira instância
e que com a renúncia ou cumprimento dos seus mandatos agora também
querem ser julgadas no foro especial.
Optando pela segunda possibilidade, a Suprema
Corte permitirá, também, que os demais Tribunais sejam provocados
com pedidos para avocar os feitos de ex-autoridades que gozaram de
foro especial, especialmente com base no princípio da igualdade.
(1) https://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=76101.
Acesso em 10/11/2007
(2) https://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=75842.
Acesso em 10/11/2007.
(3) A renúncia
de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda
do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos
até as deliberações finais de que tratam os §§ 2.º e 3.º (Incluído pela
Emenda Constitucional de Revisão n.º 6, de 1994).
(4) Silva,
José Afonso da. Curso
de Direito Constitucional Positivo. 13.ª ed. São Paulo: Malheiros,
1997. p. 417: “Constitui-se de ‘garantias’ que visam tutelar a liberdade
pessoal. Figura ela no art. 5.º, XXXVII a XLVII, mais a hipótese
do inc. LXXV, sem falar no ‘habeas corpus’, incluído entre os remédios
constitucionais. Essas garantias penais ou criminais protegem o
indivíduo contra atuações arbitrárias.
(5) HC 69.325 – GO, Rel. Ministro Néri
da Silveira; HC 70.581– AL, Rel. Ministro Marco Aurélio. No campo
doutrinário, Alexandre de Moraes faz à mesma interpretação. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São
Paulo: Atlas, 2002. p. 307.
(6) Ver estudo específico de Edson Pereira
Belo da Silva. Tribunal do
júri: ampliação de sua competência para julgar os crimes dolosos
com evento morte. São Paulo: Iglu Editora, 2006. p. 74/79.
(7) Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2.ª
ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 117.