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Postado por admin em 15/mar/2016 -

 

(publicado no site www.conjur.com.br, em 26 de novembro de 2007)

Edson Pereira Belo da Silva, advogado, professor de processo penal, autor de obras jurídicas inéditas, pós-graduado em direito, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante ([email protected]).

 

 

01. Considerações iniciais.

 

O então deputado federal pelo Estado da Paraíba, Ronaldo José da Cunha Lima, renunciou ao mandato – que exerceria na legislatura 2007/2011 – no dia 30 de outubro de 2007, (1) portanto alguns dias antes do Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgar a Ação Penal n.º 333 em que ele, agora ex-parlamentar, é acusado de tentar contra a vida de Tarcísio Buriti, um suposto inimigo político, fato esse ocorrido em 5 de  novembro  de 1993. No pedido de renúncia, que é irrevogável, o ex-deputado manifestou expressamente a vontade de ser julgado pelo Tribunal Popular do seu Estado natal, sendo esse o motivo primordial para ter renunciado de “última hora”.

 

Renunciar ao mandato para evitar a perda dos direitos políticos (ser “cassado”) tem sido uma constante nos parlamentos brasileiros (federal, estadual e municipal), sobretudo quando as provas são contundentes ou o parlamentar acusado não tem força política suficiente para impedir a cassação do referido mandato. Com isso, todos os elementos de provas coligidos contra o agora ex-parlamentar são remetidos ao Ministério Público, o qual adotará os procedimentos legais pertinentes ao caso.  

 

Em sentido oposto, e comum, muitos ex-políticos, que respondem a processos na primeira instância do Judiciário, buscam conquistar um mandato eleitoral nos Poderes Executivos ou Legislativos das três esferas de governo somente com o escopo de ver deslocada para o Tribunal respectivo (STF, STJ, TJ) a competência para julgar os processos penais dos quais são acusados de praticar os mais variados delitos. Assinale-se, contudo, que dentre os cargos eletivos apenas o de vereador, em várias Unidades da Federação, não possui o desejado foro por prerrogativa de função, como, por exemplo, no Estado de São Paulo.

 

 

Na situação em cotejo, o ex-deputado paraibano, depois de ver hibernar por 14 anos nas Cortes Superiores (STJ e finalmente STF) a Ação Penal que responde pela suposta pratica de crime doloso contra a vida, na modalidade tentada, de competência do Tribunal Popular, decidiu renunciar o mandato para ver-se julgado pelo Júri da Comarca de João Pessoa – PB, para onde será remetido todo o processo penal, caso a Corte Suprema não se dê por competente.

 

Alega-se que o ex-parlamentar, ao renunciar, “abusou do direito”. Há quem dissesse também que “O ato dele é um escárnio para com a Justiça brasileira em geral e para com o Supremo em especial”.

 

Para o ministro do Supremo Tribunal, Joaquim Barbosa, que relata a aludida Ação Penal, “uma vez definida a data de julgamento do processo, como ocorreu na ação penal contra o ex-parlamentar, não caberia ao réu mudar a instância judicial competente para julgá-lo”.  (2) o ministro Aires Britto, da mesma Corte constitucional, sustentou que, sem dúvida alguma, o parágrafo 4.º, (3) do artigo 55, da Constituição Federal foi pensado para impedir tal abuso. Isto é, a renuncia do mandato estaria suspensa.

 

Como visto, da simples renúncia de um deputado federal, a Suprema Corte pode, finalmente, reconhecer que a competência do Tribunal do Júri prevalece sobre a do foro por prerrogativa da função. Do contrário, poderá o STF abrir um perigoso precedente para que ex-autoridades (parlamentares, ministros, governadores prefeitos) possam requerer que seus processos penais em tramite na primeira instância sejam remetidos para lá, já que o Supremo Tribunal insiste em julgar ex-parlamentar.

 

02. Prevalência da competência do Tribunal Júri, que é o autêntico juiz natural para processo e julgar os crimes dolosos contra a vida.

 

O Supremo Tribunal Federal, por seu Pleno, tem uma grande oportunidade de corrigir um dos maiores equívocos jurídicos, a nosso ver, no que concerne o conflito de competência entre o Júri e o foro por prerrogativa da função quando o delito praticado é doloso contra a vida. em outras palavras, se um cidadão comum matar alguém será ele julgado pelo Tribunal Popular (artigo 5.º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da CF); ao passo que se um deputado federal ou senador da República praticar o mesmo delito caberá ao STF processá-lo e julgá-lo (artigo 102, inciso I, alínea “b”, da CF).

Apesar da Constituição Federal prevê o foro por prerrogativas da função para inúmeras autoridades (membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, presidente, governador, prefeito, deputado federal, senador, ministro, conselheiro dos Tribunais de Contas, chefes de missão diplomática de caráter permanente e os comandantes da Marinha, Exercito e Aeronáutica), não ficou consignado em nenhum dos seus dispositivos referentes a tal foro que os “crimes dolosos contra a vida” também seriam julgados pelo Tribunal togado respectivo.

 

É claro que hão de pensar que, de igual forma, não se vedou aqueles Tribunais togados de processar julgar os delitos do Júri em razão do foro privilegiado. Mas, a nosso sentir, a competência do Tribunal do Popular não poderia ser afastada em nenhuma situação, sobremaneira por se tratar de uma garantia constitucional individual, (4) tanto que ela não pode sequer ser objeto de proposta de Emenda Constitucional (artigo 60, § 4.º, inciso iv, da CF).  

 

O Texto Fundamental é bem claro: cabe ao Tribunal do Júri julgar os crimes dolosos contra a vida. Logo, qualquer cidadão, indistintamente, goza desse princípio garantista, do qual sequer pode renunciar; de modo que tal princípio não pode ser afastado ou desprezado pelo simples fato de ter determinada pessoa galgado um mandato eletivo, ingressado na magistratura ou no Ministério Público, etc. e, com isso, alcançado um foro mais específico, o foro por prerrogativa de função.

 

A Suprema Corte Federal já deu mostra de que deve mesmo prevalecer à competência do Júri ao editar a Súmula 721, cuja qual está assim redigida: “A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual”.

 

Destarte, continua o STF entendendo, até aqui, ser constitucional o foro por prerrogativa de função, em detrimento da competência do Júri, quando previsto na Constituição da República, ou seja, todas as autoridades estatais (13 ao todo) cujo foro privilegiado esteja previsto na referida Carta Política Federal, ainda que sejam elas acusadas de delitos dolosos contra a vida, serão julgadas pelos Tribunais togados respectivos (STF, STJ e TJ), pois ambas as competências (dos Tribunais popular e togado) são definidas pela Lei Maior.     

 

Vale dizer, portanto, que a competência do Tribunal Popular não é absoluta, (5) cedendo esta àquela dos Tribunais togados – que também foi fixada pela mesma Constituição Federal – para julgar determinadas autoridades públicas.

 

Em que pese o posicionamento do Tribunal constitucional, privilegiando duplamente os já privilegiados, dado que não são todos que conseguem exercer um relevante cargo público e com foro especial, não existe qualquer razoabilidade em afastar do julgo dos magistrados popular as aludidas autoridades acusadas de praticar crimes dolosos contra a vida.

 

E com o devido respeito à posição da nossa Corte Suprema, a qual tem prestado substanciais serviços à nação, não é preciso invocar o imortal Rui Barbosa para sustentar tal ausência de razoabilidade.

 

Quando o legislador constituinte de 1988 entregou ao Júri o objeto jurídico vida (artigo 5.º, “caput”, da CF), tornando-o, assim, competente para julgar todos os delitos dolosos contra a vida, quis ele que o povo, exercendo direitamente poder (artigo 1.º, parágrafo único, da CF), fosse o único a julgar os acusados de violarem valioso bem jurídico. Do contrário, teria posto uma ressalva, em alguma parte do dispositivo de regência (inciso XXXVIII, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, do artigo 5.º, CF), mencionando que não se submetem ao julgo do Tribunal Popular àquelas autoridades que usufruem do foro por prerrogativa de função (“imortais”).

 

Mas, essa ressalva não veio expressa nem no Título I e, muito menos, nos demais Títulos da Carta Política em referência, restando aos Tribunais, mais especificamente o STF, que o guardião da Constituição, interpretar essa “questão de ordem” de natureza constitucional como há muito vem fazendo, por vezes de forma mais política do que jurídica.

 

Dessa forma, sob a nossa ótica, a competência do Tribunal do Júri é absoluta por ser ele o único juiz natural previsto no rol das garantias constitucionais, não estando incluso no elenco do artigo 92, da CF, como órgão do Poder Judiciário. Ademais, essa mesma competência também é “mínima”, (6) uma vez que pode ser ampliada para julgar outros delitos, tanto é assim que já julga os delitos conexos (homicídio + ocultação de cadáver).  

Rogério Lauria Tucci, renomado processualista, enfatiza em magistério de fôlego (7) que o Júri é o “’tribunal natural’ para o processamento final das causas penais referentes aos ‘crimes dolosos contra a vida’, no âmbito da Justiça Criminal comum, que integra, e com a obvia exclusão de qualquer outro órgão judicante” (grifo nosso).

 

Emerge-se, ainda, um outro valoroso e indispensável fundamento para alicerçar o nosso simplório entendimento, qual seja: o Júri é um Tribunal composto por pessoas povo, tidas como leigas e que julgam segundo as vossas íntimas consciências (ouvem as exposições das partes e decidem secreta e soberanamente), sem ter qualquer contato político externo.

 

Por sua vez, os Tribunais togados sofrem todo o tipo de “assédio político” das autoridades com foro especial – cafés, almoços, jantares, encontros em eventos turísticos ou de lazer, etc. – que ali são acusadas, além de visitas dos seus procuradores; ao passo que os membros do Conselho de Sentença não experimentam isso, porque é formado ele no dia do julgamento final, não podendo, sequer, discutir o caso entre si, antecipar votos, voltar atrás de sua decisão, o que é comum acontecer nas Cortes togadas.

 

Como se vê, o julgamento pelo Tribunal Popular dos crimes de sua competência, assim pretendido pelo legislador constituinte, é muito diferente daquele realizado pelas Cortes togadas, o que, sem dúvida alguma, agride novamente a garantia constitucional do “devido processo legal”, a qual foi ofendida inicialmente quando se deixou de observar o Júri como “o juiz natural” para julgar todos os acusados de delitos dolosos contra a vida. 

 

Oportuno assinalar, nesse passo, que os maiores interessados no foro privilegiado – a classe política – em momento algum tentaram alterar a Constituição Federal, via Emenda Constitucional, para fazer constar que o mencionado foro especial prevalece sobre a competência do Júri, isto é, mesmo se fosse praticado um crime doloso contra a vida, ainda sim prevaleceria à competência do Tribunal togado respectivo.

 

De fato, não houve necessidade de o Congresso Nacional fazer o seu papel, exercer a sua função precípua (legislar), posto ter o Supremo Tribunal Federal interpretado a Lei Maior politicamente, em detrimento do Tribunal Popular, que passou a julgar tão-somente pessoas “mortais” ou comuns, tendo limitada ainda mais a sua competência constitucional justamente pelo seu guardião: o STF.

Se todo o poder emana do povo e por ele é exercido diretamente ou por meio de representantes (artigo 1.º, parágrafo único, da CF), não pode nenhum Tribunal togado dizer ao povo que ele (Júri)  não pode julgar as autoridades públicas cujas quais, legítima e juridicamente, constituíram para representá-lo.

 

A exegese feita pelas Cortes togadas em sentido contrário, retira ou retirou do povo parte do poder que seus representes, eleitos diretamente, fizeram constar logo no artigo 1.º da Carta Política, bem como no inciso XXXVIII, do seu artigo 5.º. Isso nos levar a imaginar que o povo só tem competência para votar, pagar tributos e padecer com as mazelas da Justiça, sendo alijado do direito de exercer o seu poder diretamente no Tribunal do Júri, julgando todos aqueles, inclusive os magistrados togados que forem acusado de praticar um dos crimes de sua competência da Corte Popular (vide artigos 121 a 127, do Código Penal).     

 

03. Da garantia constitucional de ser julgado pelo povo.

 

No caso do ex-deputado, Ronaldo José da Cunha Lima, inicialmente, não há o que se criticar, quando ele simplesmente fez uso da Lei, como tantos outros fizeram no passado, mas por outros motivos. Em outros termos, se a norma posta admite a renúncia do mandato, não cabe censurar quem a usa.

 

O STF tem a grande oportunidade de começar a colocar um basta na “festa do foro privilegiado”, dando ao Júri todo o crédito que ele merece para julgar os delitos contra a vida eventualmente praticados por aqueles que possuem foro especial. A resposta da Corte constitucional deve ser democrática, razoável e atender o interesse do povo, e não revestida de “revanchismo” ou “vingança” só pelo fato de se ter renunciado ao mandato eletivo para não ser julgado pelo Plenário do Tribunal Supremo.

 

Essa teratologia ou esse “Frankenstein” moderno nascera da jurisprudência dos Tribunais togados, cujos membros têm pavor de ser julgados pelo magistrado popular, daí continuarem mantendo o foro privilegiado mesmo para quem não quer mais o privilégio, inclusive para autoridade acusada de matar um cidadão inocente.

 

Ora, data vênia, não se pode obrigar um cidadão (acusado ou não) a permanecer com o foro especial e, por conseguinte, no cargo eletivo se ele não o deseja mais. A tendência é extirpar o foro por prerrogativa de função, porque o povo clama por isso, e não criar obstáculos, por via da hermenêutica, para que o ex-parlamentar permaneça atado ao foro do qual ele abriu mão, espontaneamente.

 

Mais uma vez, com o devido respeito, um julgamento não pode se eternizar num só Tribunal. Em regra, o processo leva vários anos para ser concluído, passando por duas instâncias e Cortes Superiores. Pelo que se sabe, só em dois Tribunais Superiores (STJ e STF) o processo levou 14 anos tramitando, até ser designado a data final para julgamento.

 

O julgamento no STF não pode ser eterno, sobretudo pela impossibilidade de ser recorrer de suas decisões, haja vista ser esta Corte originária o único e último juízo natural para julgar deputados federais (artigo 102, inciso I, alínea “b”, da CF).

 

Não obstante, a Corte Suprema não pode abrir um precedente para ex-autoridades. Isso certamente ocorrerá, caso referido Tribunal decida manter a sua competência para julgar a Ação Penal n.º 333 contra o ex-parlamentar que renunciou o mandato em caráter irrevogável.

 

Como o STF não pode revogar a renúncia e restabelecer o mandato então renunciado, terá que escolher uma das duas possibilidades: (i) deixar o Tribunal do Júri da Comarca de João Pessoa – PB julgar o seu semelhante e ex-representante político, como quer o próprio renunciante; (ii) ou manter o julgamento do feito penal na Corte, criando um precedente para dezenas ou centenas de pedidos de ex-autoridades que respondem a processos penais na primeira instância e que com a renúncia ou cumprimento dos seus mandatos agora também querem ser julgadas no foro especial.

 

Optando pela segunda possibilidade, a Suprema Corte permitirá, também, que os demais Tribunais sejam provocados com pedidos para avocar os feitos de ex-autoridades que gozaram de foro especial, especialmente com base no princípio da igualdade.

   

     

                 

 

 

  

 

 

 



(1) https://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=76101. Acesso em 10/11/2007

(2) https://www.stf.gov.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=75842. Acesso em 10/11/2007.

(3) A renúncia de parlamentar submetido a processo que vise ou possa levar à perda do mandato, nos termos deste artigo, terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais de que tratam os §§ 2.º e 3.º (Incluído pela Emenda Constitucional de Revisão n.º 6, de 1994).

(4) Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 417: “Constitui-se de ‘garantias’ que visam tutelar a liberdade pessoal. Figura ela no art. 5.º, XXXVII a XLVII, mais a hipótese do inc. LXXV, sem falar no ‘habeas corpus’, incluído entre os remédios constitucionais. Essas garantias penais ou criminais protegem o indivíduo contra atuações arbitrárias.

(5) HC 69.325 – GO, Rel. Ministro Néri da Silveira; HC 70.581– AL, Rel. Ministro Marco Aurélio. No campo doutrinário, Alexandre de Moraes faz à mesma interpretação. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002. p. 307.

(6) Ver estudo específico de Edson Pereira Belo da Silva. Tribunal do júri: ampliação de sua competência para julgar os crimes dolosos com evento morte. São Paulo: Iglu Editora, 2006. p. 74/79.

(7) Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2.ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 117.