Edson Pereira Belo da Silva
Advogado em São Paulo, pós-graduado em direito
e membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP.
1.
Introdução.
A Constituição Federal assegura, dentre outras garantias, que ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou tratamento degradante (artigo 5.º, inciso III), e, notadamente ao preso, o respeito à integridade física e moral (artigo 5.º, inciso XLIX), além do efetivo exercício da ampla defesa e do contraditório nos processos judiciais e administrativos (artigo 5.º, inciso LV). Mas, antes de assegurar tais garantias, a nossa Carta Política ressalta que um dos fundamentos principais da nossa República Federativa é a dignidade da pessoa humana (artigo 1.º, inciso III).
Mesmo
com esses relevantes fundamentos constitucionais – os quais caminham
para dezoito anos de existência, assinale –, verifica-se
que o Estado ainda não aplica e não dá mostra de
querer aplicar, efetivamente, os princípios fundamentais e garantitas,
notadamente os direitos dos presos, os quais são torturados,
frequentemente, pelos agentes estatais no momento da prisão,
durante e depois, violência essa que é reforçada
no cárcere pelos presos ligados a facções, comandos
ou grupos criminosos, sem muita interferência do mesmo Estado.
Essa tortura no sistema carcerário do país, promovida
pelos agentes estatais, contando com a substancial omissão dos
dirigentes desse mesmo Estado, não só nos envergonha como
mostra uma face oculta oriunda de um regime repressivo que insiste e
persiste em sobreviver, ainda que na clandestinidade. Definitivamente,
a ditadura fez seus discípulos!
A prova de que o Brasil desrespeita os direitos humanos – praticando sem pudor a tortura – está nos sucessivos relatórios da Comissão Especial dos Direitos Humanos da ONU, bem como nos milhares de denúncias que as Ouvidorias das Polícias dos Estados recebem anualmente, notadamente a de São Paulo. (1) Isso fez com que à Procuradoria Geral da Republicar criasse um grupo de trabalho, denominado de Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC), para enfrentar este grave problema que já chamou a atenção da Organização das Nações Unidas.
2. Objetivos e prejuízos.
A nossa proposta tem como escopo não apenas preservar a integridade física do preso, sobretudo, mas também produzir prova pericial, tanto para ele como para o Estado-acusador e seus agentes protetores e vigilantes.
A legislação processual penal em vigor, inclusive a militar, não prevê a obrigatoriedade da realização do exame de corpo de delito para a pessoa que é recolhida ao cárcere, seja ele provisório ou para cumprimento de pena; de modo que fica a critério das autoridades policiais determinarem ou não à feitura do referido exame, expedindo-se a respectiva guia para tanto.
Ora, a legislação processual penal não pode continuar com tamanha lacuna, deixando na discricionariedade dos delegados de polícia a expedição de guia ou não para o exame de corpo de delito na pessoa presa, quando é do conhecimento meridiano, conforme demonstramos acima, que a tortura praticada por agentes estatais e a violência carcerária, há muito, ainda tiram o sono da nossa sociedade, além de ser uma fonte de indenização contra o erário e, ao mesmo tempo, de injustiça.
Isso por que, em incontáveis casos, a prova da lesão corporal, que derivou da tortura ou que origem a uma eventual legitima defesa, fica prejudicada pela não realização do exame de corpo de delito.
Em regra, ao ser presa pela suposta prática de delito – na maioria dos casos em flagrante – a pessoa alega que sofreu violência policial (tortura), mas, como esse comportamento violente dos agentes também se modernizou, a autoridade policial, em um passe de mágica, se torna médico, e examina a olho nu, não detectando aparentemente qualquer lesão, deixando assim de expedir a guia para a realização do sobredito exame.
Ao deixar de expedir a guia para o exame, a autoridade soterra uma relevante prova de natureza pericial que, dentre outras finalidades, pode até servir como meio de prova para a própria autoridade policial, quando o preso acusá-la de violência, tortura ou omissão e o laudo demonstrar que não foram constatadas lesões.
De igual forma, pode servir àquela prova pericial para embasar as teses acusatórias ou defensivas do preso-acusado, quais sejam, (i) eventual alegação de violência praticada pelos agentes da autoridade ou pelos demais presos e (ii) legitima defesa.
Vale enfatizar que a prova oral (depoimentos de vítimas e testemunhas) não substitui com eficiência a prova especifica desprezada.
Em alguns casos, mais especificamente nos crimes contra os costumes e contra crianças e adolescentes, o delegado de polícia faz expedir a guia para o exame em testilha como medida de cautela, buscando livrar-se, eventualmente, de qualquer responsabilidade ou acusação de violência. A mesma autoridade também age com essa precaução quando a pessoa presa possui notoriedade no meio social ou é parente de algum agente público. E nessa hipótese o cuidado é redobrado, ou seja, um exame ao ser preso e outro ao ser libertado.
Percebe-se, portanto, que o critério adotado quase sempre é discriminatório e atende a supostos interesses de determinadas autoridades policiais.
Citemos um exemplo de substancial prejuízo para preso quando não se faz o exame de corpo de delito: entre A, jovem estudante, e um grupo de indivíduos vadios existe um estado de animosidade prolongado, esperando esse último somente uma oportunidade melhor para por fim nas diferenças existentes com o primeiro. Certo dia, tal grupo depara-se com A, à noite, e parte para agredi-lo com os punhos, enquanto A, sozinho e temeroso por esse encontro, ao acaso, que um dia aconteceria, saca de uma faca de cozinha (arma braça) que estava em sua bolsa e desferi um golpe que atinge um dos seus agressores, ocasionando lesão de natureza grave ou gravíssima, empreendendo fuga logo após, até ser alcançado pelos desafetos e os policiais ainda de posse da arma do aparente crime. Já na delegacia os policiais, o grupo de agressores e A são ouvidos, tendo o delegado ratificado a voz de prisão em flagrante, lavrado o respectivo auto e expedido guia para a realização do exame de corpo de delito somente na suposta vítima, já que, a olho nu, não encontrou qualquer vestígio de agressão em A. Com base nas provas colhidas pela polícia judiciária, A então é denunciado por tentativa de homicídio duplamente qualificado, bem como pronunciado ao Tribunal do Júri. Ressalte-se que desde o seu primeiro depoimento, A (preso e acusado) vem sustentando que apenas se defendeu das agressões físicas sofridas e iniciadas pelo grupo de desafetos, mas como A não tem testemunhas, por que os fatos ocorreram à noite em uma rua escura e pouco movimentada, logo, só restaria à prova pericial não produzida no momento da prisão para comprovar que também foi agredido.
Esse exemplo demonstra que se o exame em foco tivesse sido feito A não teria sido prejudicado na tentativa de comprovar sua tese de legitima defesa. Por sua vez, o exame em referência também poderia não constatar lesões corporais, de sorte que isso poderia muito bem ser usado contra ele.
Com efeito, de um ponto ao outro, a obrigatoriedade do exame de corpo de delito para os casos de recolhimento à prisão, provisória ou cumprimento de pena, de natureza penal ou militar, é uma medida necessária e urgente que viabiliza e proporciona o tão sonhado encontro da verdade real.
Nesse contexto, não se pode em momento algum levar em consideração o fato de que muitos dos Estados da Federação sofrem com a gritante carência estrutural de suas polícias científicas, as quais trabalham quase sempre com o número insignificante de médicos legistas, peritos criminais e auxiliares, de modo que não teria condições para atender a demanda.
Essa circunstância ou a falta de recurso estatal para investir e aprimorar não pode se sobrepor, jamais, à garantia constitucional da defesa ampla – admitida desde a fase investigativa –, que se consubstancia na efetiva produção de provas, dentre elas a pericial.
Não se desconhece o direito do preso de requerer a realização do aludido exame (artigo 184, do CPP); todavia, ele desconhece a lei processual penal e, em regra, não possui condições de constituir advogado, aliando-se a isso a falta de assistência jurídica e gratuita na fase investigativa, que poderia ser propiciada por defensor público ou advogado dativo, o qual iria orientá-lo e requerer o necessário à autoridade policial.
Destarte, nos parece que constituir um advogado penalista no Brasil virou artigo de luxo, isso devido ao empobrecimento crescente de grande parte da população brasileira em contrapartida ao enriquecimento de poucos. Sem ninguém conhecimento jurídico e muito menos defensor as provas a serem colhidas no inquérito policial ficam sob o arbítrio, exclusivo, do delegado.
Importante enfatizar que, na maioria das investigações, quando não se tem um advogado acompanhado o andamento do inquérito ou do auto de prisão em flagrante, a colheita das provas percorre todo o caminho que leva à responsabilidade criminal do preso.
São raras, se é que existem tais raridades, às investigações realizadas pela polícia no intuito de colher provas que possam, de alguma forma, beneficiar o indiciado ou acusado. Muito pelo contrário, se não servir para incriminar elas são desprezadas. Daí foi que surgiu o comentário de que a polícia judiciária, em regra, só trabalha para o Ministério Público acusar: depois não quer ser controlado pelo referido órgão acusador.
Nota-se assim, que o exame de corpo de delito também realizado na pessoa presa, cautelarmente ou que irá iniciar o cumprimento de pena, é um elemento de prova (pericial) relevante para ambas as partes e que não pode ficar sob o poder discricionário da autoridade; além de servir de cautela para os agentes do Estado que venham ser injustamente acusados de violência policial ou tortura no instante em que foi efetuada à prisão, durante a lavratura do flagrante ou do período em que a pessoa presa permanecer recolhida no Distrito Policial.
Portanto, eis as razões que nos leva a exigir a imediata alteração do Código de Processo Penal para impor a obrigatoriedade desse substancial exame na pessoa presa, sob pena de responsabilização penal e administrativa da autoridade que não fizer expedir a guia para tanto.
Email – [email protected]