Edson Pereira Belo da
Silva
Advogado
(publicado no site www.conjur.com.br,
em 05 de julho de 2006)
O princípio
da moralidade surgiu com a Constituição da República, de 5 de outubro de 1988, artigo 37, “caput”, como
uma inovação no que tange à administração pública, consagrando os
princípios e preceitos básicos atinentes à gestão da coisa pública.
Por esse princípio, segundo os ensinamentos preciosos de Celso Antônio
Bandeira de Melo, (1) “a administração tem de atuar na conformidade
dos princípios éticos. Violá-los, implicará violação ao próprio Direito”.
Ainda sobre
a moralidade, Hely Lopes Meireles cita em seu magistério (2)
a lição do renomado Maurice Hauriou, para quem “o agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de
atuar, deve, necessariamente,
distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não
poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim não terá que
decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente
e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, as também sobre o honesto
e desonesto. Por considerações de Direito e Moral, o ato administrativo
não terá que obedecer somente a lei jurídica, mas também a lei ética
da própria instituição”.
Essas singelas
citações doutrinárias de fôlego permitem-nos abstrair, sem complexidade,
qual o comportamento que deve nortear os administradores na gerência
da coisa pública, pois, fora disso, poderão tais agentes públicos
ser responsabilizados por atos de improbidade administrativa, os quais
importam na suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública,
a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma
e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível (vide
artigos 37, § 4.º, e 85, inciso V, ambos da CF).
A probidade
administrativa, enfatize-se, é uma forma de moralidade administrativa,
e que, na brilhante lição de José Afonso da Silva, (3) “consiste no dever do funcionário
servir à Administração com honestidade, procedendo no exercício das
suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes
em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer. Cuida-se
de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa
é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente
vantagem ao ímpobro ou a outrem”.
Nesse contexto,
importante asseverar que a Constituição Federal impõem não só a aplicação
do princípio da moralidade como também a sua obediência em todos os
níveis da administração pública, direta ou indireta, isto é, aos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Dentre
esses Poderes, obviamente, inclui-se o Poder Legislativo, objeto de
nossa análise. Vale dizer, portanto, que a exegese do aludido dispositivo
constitucional é no sentido de que todos os princípios aqui citados,
notadamente o da moralidade, aplicam-se ao Legislativo. E, nesse passo,
não encontramos entendimento doutrinário ou jurisprudencial divergente.
A nossa República
Federativa, onde impera a tripartição dos Poderes, os quais são harmônicos
e independestes entre si (artigos 1.º e 2.º, da CF), legou ao seu
primeiro e, certamente, principal Poder, o Legislativo, talvez a maior
responsabilidade entre os demais, qual seja, legislar e fiscalizar, tendo
ambas funções a mesma relevância; de sorte que isso merece um melhor
detalhamento.
Assinale,
no entanto, que no plano estadual ou municipal, tudo isso se repete,
pois as Constituições dos Estados ou Leis Orgânicas devem estar em
perfeita consonância com a Constituição da República, (4) devido ao sagrado princípio da hierarquia das leis,
que, se ignorado ou desrespeitado, leva à declaração de inconstitucionalidade.
Essa função
legislativa, e ao mesmo tempo fiscalizadora (artigos 70 e seguintes,
da CF), é exercida: (i) pelo Congresso Nacional, representado pelo
Senado e Câmara dos Deputados (senadores e deputados federais), no
plano Nacional; (ii) pelas Assembléias Legislativas ou Câmara Legislativa
(deputados), nos Estados ou Distrito Federal; (iii) e pelas Câmaras
Municipais (vereadores), nos Municípios.
Apesar do
relevante grau de responsabilidade atribuído ao Legislativo pela nossa
Carta Maior, como visto, esse Poder, na maioria de suas casas legislativas,
há muito tempo, tem experimentado a ausência de credibilidade perante
o povo, verdadeiro detentor de todo o poder que dele emana (artigo
1.º, parágrafo único, da CF).
Esse notório
descrédito que atinge gravemente o Poder Legislativo advém, sobremaneira,
da inobservância do princípio da moralidade em cotejo, cuja qual é
motivada pelas séries de acusações públicas, e contínuas, que pesam
sobre os seus membros (senadores, deputados federais, estaduais, distrital
e vereadores), e que não cessam com o passar do tempo. Quanto mais
se denunciam irregularidades administrativas, mais elas brotam desse
terreno, que parece “fértil” para coisas nada republicanas.
O estado
de imoralidade que acometeu o Legislativo, na sua grande maioria,
não se iniciou neste século ou nesta década. Essa espécie de “patologia
social” não nos permite identificar com segurança o seu termo inicial;
porém, arriscaríamos afirmar que ela tenha surgido juntamente com
a criação do próprio Poder em referência pela Constituição do Império,
de 25 de março de1824. (5)
Para rememorar,
não nos custa transcrever o dispositivo legal da citada Carta Imperial
que cuidava do tema em testilha: “Art. 10. Os Poderes Políticos reconhecidos
pela Constituição do Império do Brasil são quatro: O Poder Legislativo,
o Poder Moderador, o Poder Executivo e o Poder Judiciário”. De igual
forma, abordando o aspecto histórico daquela Carta, sempre oportuno,
asseveramos que o Poder Moderador era chave de toda organização política,
privativa do Imperador como Chefe Supremo da Nação, o qual não estava
sujeito a qualquer responsabilidade (artigos 98 e 99).
Sem querermos
ser irônico, percebe-se que ainda hoje existem muitos agentes públicos
ou políticos que ainda agem como se fossem a própria Majestade Imperial,
Senhores Supremos da nossa República e que para eles é Império, revivendo,
de maneira retrograda, o Poder Moderador no intuito, quem sabe, de
não se sujeitarem a nenhuma responsabilidade pelos seus atos.
Retomando
o tema, poderíamos dizer que não saberíamos ao certo quando se findaria
essas ofensas seqüenciais ao princípio da moralidade apontadas pelo
Judiciário, pelo Ministério Público e por investigações jornalísticas,
tudo isso amplamente noticiado pela mídia, pois o Legislativo, através
de seus membros, pasme, insiste em não sair do noticiário.
O que notamos
na realidade é que a imoralidade no Legislativo, sobretudo pela sua
relevância sobre os demais Poderes, parece mesmo ter atingido o seu
ápice ou o fundo do poço – se é que ainda existe poço –; isso por
que nem a sociedade, nem a minoria dos parlamentares não se surpreendem
mais em ver as casas legislativas envolvidas nas acusações de práticas
irregularidades, uma mais grave do que a outra.
Se não bastassem
as gravíssimas acusações, mais especificamente no Legislativo Federal,
de existirem “anões do orçamento”, “lavagem de dinheiro”, “máfia dos
vampiros”, “máfia dos sanguessugas”, “mensalão”, “caixa dois nas eleições”,
etc., vemos ainda muitos de seus membros agirem
como se fossem anjos, arcanjos ou querubins, após retornarem ao parlamento
depois de terem renunciado
seus mandados para não serem cassados por comprovadas irregularidades.
A atitude
surrealista de tais parlamentares que conquistaram outro mandato posteriormente
à renúncia, releva, sem sobra de dúvidas, como o princípio da moralidade
parece ser incompatível com o Legislativo atual, principalmente. Vejamos:
o parlamentar ao renunciar o seu mandato, acaba escapando do processo
de cassação para tanto, mantendo-se, assim, elegível; retornado na
próxima legislatura, em regra da mesma forma que a anterior, com a
alma renovada, como se nada tivesse ocorrido ou absolvido da prática
de algum ilícito, a ponto de integrar tranqüilamente uma ou algumas
das Comissões internas da Casa, ou até mesmo uma ou mais Comissões
Parlamentares de Inquérito.
Nas Comissões
internas, que tratam de temas relevantes e diferenciados, esses mesmos
parlamentares, até então supostamente envolvidos em graves irregularidades,
emitem pareceres e, por vezes, a presidem. Enquanto que nas CPIs,
aqueles réus, agora travestidos de magistrados políticos, papeis invertidos,
passam a interrogar os investigados e acusá-los de serem criminosos,
bem como a chamar as testemunhas de mentirosas.
O cinismo
é tanto, que, constantemente, dão voz de prisão e pretende alguém
que esta depondo
A impunidade
entre os membros do parlamento é tanta que a população já fez a seguinte
piada: “Se Suzane
Louise Richthofen (6) pudesse ser ‘julgada’ por alguns membros do Congresso
Nacional ela teria grande chance de ser absolvida”, já que muitos
parlamentares não sabem de nada e absolve quem confessa um delito.
Junte-se
a esse quadro de impunidade, a falta de respeito que os parlamentares
proporcionam aos seus próprios colegas e a membros de outros Poderes,
com ameaças de agressão física e ofensas de toda sorte, inclusive
ao Presidente da República, a quem um parlamentar ameaçou surrar. (7)
Já o Judiciário, também não foi poupado, bastando lembrar que a Justiça
baiana, recentemente, foi chamada de “prostituída” e “acusada de receber
presentes” por um senador daquele Estado. (8)
Cumpre ressaltar,
contudo, que inúmeros membros das diversas casas legislativas são
acusados de se elegerem utilizando dinheiro não contabilizado, não
declarado ou caixa dois. Ora, se antes mesmo de conquistarem o mandato
almejado determinados candidatos já são acusados prática de ilícito
eleitoral, não devemos esperar destes outra coisa no parlamento, senão
a imoralidade. (10)
Por essas
e outras questões, também conhecidas, é que não temos dúvida de que
o Legislativo brasileiro, principalmente o Federal – de onde deve
nascer as principais leis que regem o país –, além de passar por uma
grave crise de credibilidade, tem ferido de morte o sagrado princípio
da moralidade aqui cotejado, deixando transparecer, aparentemente,
que não possui interesse em alterar essa inacreditável e atual situação.
A quem diga
que nem tudo está perdido, e parece mesmo que não estar, de maneira
que depositamos todas nossas fichas na legislatura federal que se
inicia em 2007, cuja qual poderá, aí sim, alterar um pouco o desolador
cenário legislativo, de forma quantitativa e qualitativa.
Poder-se-ia
exigir-se, também, dos administradores públicos que atingissem o princípio
da eficiência; todavia, num país onde a maioria e os principais cargos
públicos são geridos por “apadrinhados” políticos incompetentes e
descompromissados com a moralidade, isso parece ser uma outra realidade
muito distante do nosso tempo.
(1) Curso de direito administrativo.
10.ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros, 1998.
p. 72.
(2) Direito administrativo
brasileiro. 22.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 83.
(3) Curso
de direito constitucional positivo. 13.ª ed. rev. e atual. São
Paulo: Malheiros, 1997. p. 616.
(4) Tome-se como exemplo a Carta Maior
do Estado de São Paulo, artigos 5.º, 9.º e seguintes.
(5) Adriano Campanhole e Hilton Lobo Campanhole. Todas as Constituições do Brasil. 1.ª ed.
São Paulo: Atlas, 1971. p. 582.
(6) Acusada de arquitetar a morte dos próprios pais com seu namorado
e o irmão deste, na madrugada de 31 de outubro de 2002.
(7). Noticia veiculada no “site” www.ultimosegundo.ig.com.br,
em 03 de novembro de 2005, e na mídia em geral.
(8) Informação colhida no “site” www.ultimosegundo.ig.com.br,
em 16 de dezembro de 2005, e também divulgada por toda a mídia.
(10) Reportagem publicada no “site” www.jbonline.terra.com.br,
de 13 de agosto de 2005.