(http://www.oabguarulhos.org.br/download/artigo_sobre_prerrogativas.pdf. 05/04/2011)
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípios Constitucionais e Dignidade Humana. Bens jurídicos constitucionais. 4. Direitos e Garantias Fundamentais do Acusado e Processo Penal. 5. Direito do Defendido à Comunicação Reservada com o seu Defensor. 6. Violação a Prerrogativas Profissionais. 7. Conclusão.
1. introdução
O presente artigo busca demonstrar que a pretensão do poder estatal em monitorar as conversas dos advogados com os clientes nas unidades prisionais – notadamente aqueles investigados ou acusados da prática de delitos hediondos ou assemelhados e de comandar “organizações criminosas” –, não está em consonância com os princípios constitucionais que regem o Estado Democrático de Direito (artigos 1.º a 4.º) e os direitos e garantias fundamentais (artigos 5.º a 17) do defendido (investigado, indiciado, acusado, preso ou condenado), além do que viola as prerrogativas do advogado.
O monitoramento dessa comunicação particular sacrifica, sobretudo, a dignidade humana do defendido (CF, artigo 1.º, III), pois o Estado pode valer-se de prova ilícita para privar a sua liberdade por conta da violação à garantia do devido processo legal (CF, artigo 5.º, LIV), da qual são corolários os direitos de defesa e ao silêncio, dentre outros, em especial. Por sua vez, a cidadania, outro princípio fundamental (CF, artigo 1.º, II), também restará violado, na medida em que o cidadão defendido não mais terá preservado ou mantido e sigilo o conteúdo da sua comunicação reservada com o defensor, direito esse decorrente da Lei Maior, do Código de Processo Penal (artigo 185, § 5.º) e da Lei de Execução Penal (artigo 41, inciso IX).
Por outro lado, o defensor, portador de prerrogativas (CF, artigo 133, Lei n.º 8.906/1994, artigo 7.º, III) para o efetivo exercício de seu ministério constitucional e essencial à Justiça, terá quebrado o seu sigilo profissional, sem motivo legal justificado.
Tais princípios, direitos, garantias e prerrogativas não são absolutos, conforme entendimento doutrinário; pelo que cedem à decisão judicial motivada e específica, principalmente em relação ao defensor, o qual não pode valer-se de tais predicados legais para, eventualmente, praticar delitos, em concurso ou não com o defendido.
A entrevista pessoal e reservada com o advogado é um direito do cliente, preso ou não; ao passo que a comunicação livre e particular do defensor com o defendido é uma prerrogativa profissional, sobremaneira para o exercício da plenitude de defesa.
2. princípios Constitucionais e dignidade humana
Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Valores esses albergados pela Lei Maior com o escopo de dar sistematização ao documento constitucional, de servir como critério de interpretação e, sobretudo, expandir os seus valores, pulverizando-os sobre todo o universo jurídico. 1
Destarte, logo no seu Preâmbulo, 2 ou seja, antes mesmo de dar conteúdo aos seus atuais 250 artigos, a Constituição Federal de 1988 deixa assente que o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça são os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Os quatro primeiros artigos do texto constitucional vigente – os quais inauguram o Título I, denominado de “Dos Princípios Fundamentais” – delineiam os contornos básicos do Estado social e Democrático de Direito que identifica a nossa República. Neste referido título, além do regime democrático social, encontram-se expressos outros fundamentos, objetivos e, sobremaneira, princípios fundamentais regentes do Estado brasileiro, tanto no plano jurídico interno como nas relações internacionais.
Ainda nesse contexto, oportuno enfatizar que a Lei Fundamental em vigor foi à primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos “Princípios Fundamentais”, situando logo na abertura do texto constitucional, após a aludida parte preambular e antes dos “Direitos e Garantias Fundamentais” (CF, artigos 5.º ao 17).
Essa postura organizacional e valorativa do legislador Constituinte, deixa clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de todo ordenamento constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição material. No mesmo sentido, e sem precedentes no aspecto evolutivo constitucional, foi o reconhecimento do princípio da dignidade humana, no âmbito do direito positivo. 3
Dentre os princípios fundamentais descritos no artigo 1.º da Lei Maior, 4 com o fim de desenvolver o presente estudo, destaca-se substancialmente dois deles, quais sejam: a “cidadania” e a “dignidade da pessoa humana” 5 (incisos II e III, respectivamente).
O primeiro princípio (“cidadania”) consiste na consciência de pertinência à sociedade estatal como titular dos direitos fundamentais, da dignidade humana, da integração participativa no processo do poder, com igual consciência de que essa situação subjetiva envolve também deveres de respeito à dignidade do outro, de contribuir par o aperfeiçoamento de todos. 6 por sua vez, a expressão “cidadania”, fundamento da República brasileira, não se resume apenas à posse de direitos políticos, mas, em acepção diversa, parece galgar significado muito mais abrangente, consubstanciado no pensamento de Hanna Arendt “do direito a ter direitos”; de modo que a idéia de cidadania está entrelaçada, intimamente, com a dignidade humana.
Quanto ao segundo princípio (“dignidade humana”), apesar da dificuldade da doutrinaria em defini-lo, pode-se afirmar ser ele um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar. Ademais, tal princípio fundamental apresenta-se em uma dupla concepção: em primeiro lugar prevê um direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos demais indivíduos; ao passo que, em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes. 7
A doutrina constitucional tem entendido que se a Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direito fundamentais, ela repousa na dignidade humana, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado. Como característica essencial da pessoa, a dignidade é um princípio que coenvolve todos os princípios relativos aos direitos e também aos deveres das pessoas e à posição do Estado perante elas. Na qualidade de princípio axiológico fundamental e limite transcendente do poder constituinte, ter-se-á que a dignidade humana como um metaprincípio. 8
Como se vê, uma das características salientes do Estado de Direito de que aqui se trata é seu comprometimento prioritário, não como o Estado e o poder instituído constitucionalmente, mas com os direitos fundamentais, inerentes à cidadania, razão de ser, justificativa primeira e última de um Estado que se pretenda verdadeiramente democrático. 9
Portanto, os princípios constitucionais fundamentais, em especial o da “dignidade humana”, norteiam o ordenamento jurídico pátrio, estabelecendo assim limites para atuação estatal na sociedade contemporânea, sobremaneira na esfera penal.
3. Bens jurídicos constitucionais
A Constituição Federal delimita quais são os bens jurídicos relevantes carecedores de proteção do Direito Penal (vida, liberdade, propriedade, igualdade, segurança, artigo 5.º, caput). No presente estudo, apenas duas categorias de “bens jurídico-penais individuais merecem destaques”: a) os bens jurídicos denominados personalismos, como a vida, a integridade física, a liberdade, a honra; b) e os bens pessoais, como o patrimônio. 10 Bem jurídico é aquele que esteja a exigir uma proteção especial, no âmbito normativo penal, por se revelarem insuficientes em relação a ele, as garantias oferecidas pelo ordenamento jurídico em outras áreas extrapenais. 11
Vale ressaltar, que o legislador ordinário penal, visando à incriminação de certas condutas, deve sempre se nortear pelas diretrizes estabelecidas na Constituição Federal e os valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, tendo em conta o caráter limitativo da tutela penal, pois, como já enfatizado, os bens dignos ou merecedores de tutela penal são, em princípio, os de indicação constitucional especifica e aqueles que se encontram em harmonia com a noção de Estado de Direito. O recurso à privação de liberdade deve ser a ultima ratio, quando absolutamente indispensável. 12
Uma vez violado bem jurídico-penal, nasce para o Estado o dever de prestar a tutela jurisdicional à sociedade, por meio do devido processo legal, com vistas a punir o infrator da norma repressora, segregando-lhe o bem jurídico-constitucional mais caro, depois da vida, a liberdade de locomoção.
Qualquer que seja o bem jurídico-penal individual violado, sempre resultará em ofensa à dignidade humana da vítima. Por outro lado, sem a fiel observância do devido processo legal (e penal), no tocante a persecução penal, o investigado, indiciado ou acusado, de igual forma, também terá sua dignidade humana violada, mas pelo Estado.
4. Direitos e garantias fundamentais do acusado e processo penal
A dignidade humana, como foi visto, a partir da Constituição brasileira de 1998 passou a ser parâmetro de interpretação jurídica para todas as áreas do Direito, de sorte que, sem exagero, o sistema jurídico pátrio gravita em torno desse fundamental princípio.
Para salvaguardar ou proteger mencionado princípio, a mesma Lei Maior estabeleceu um extenso rol de direitos e garantias fundamentais, notadamente no âmbito do Direito Penal e Processual Penal, tanto que a doutrina nacional passou a denominá-los de “Constituição Penal”, “Processo Penal Constitucional”, dentre outros, justamente porque tal norma fundamental cuidou de prevê-los.
A doutrina processual, por seu turno, tem entendido no sentido de que o direito processual, como ramo do direito público, tem suas diretrizes fundamentais traçadas pelo direito constitucional, a ponto de asseverar que o direito processual penal chega a ser apontado como direito constitucional aplicado às relações entre autoridade e liberdade. Mas, além de seus pressupostos constitucionais, comuns a todos os ramos do direito, o direito processual é fundamentalmente determinado pela norma constitucional. 13
Pode-se afirmar, por esse pensamento doutrinário, que o Processo Penal é instrumento pelo qual se materializam os direitos e garantias fundamentais do cidadão investigado ou acusado. Vale dizer ainda, que o processo constitui a primeira e mais fundamental garantia do indivíduo, pois é por meio desse instrumento, que se realiza a proteção efetiva dos direitos fundamentais consagrados pela Constituição. 14
Sob esse enfoque, percebe-se que o acusado não é um mero “objeto” da investigação criminal ou uma simples “coisa” no processo penal, mas sim sujeito (cidadão) de direitos e garantias, cujo qual também goza dos sobreditos princípios fundamentais, mais especificamente, da dignidade humana. Ora, tanto é patente essa garantia-proteção penal-constitucional que a Constituição Federal resguarda a “dignidade física e moral do preso” (artigo 5.º, xlIx); de modo que, com relação ao investigado ou acusado em liberdade, a exegese não pode ser diferente.
A preservação do bem jurídico “liberdade”, um dos fundamentais e invioláveis direitos da pessoa no Estado Democrático de Direito, encontra fundamento nas garantias constitucionais, inerentes ao devido processo penal, previstas no artigo 5.º, a saber: a) acesso à justiça penal (LXXIV e LXXVII); b) juiz natural em matéria penal (XXXVII, XXXVIII e LIII);c) tratamento paritário dos sujeitos parciais do processo penal (caput do artigo 5.º); d) plenitude de defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes (XXXVIII, a, lv); e) inadmissibilidade do uso de prova ilícita (LVI); f) da publicidade dos atos processuais penais (LX); g) direito à não auto-incriminação, ao silêncio e à assistência familiar e de advogado (LXIII); h) liberdade provisória (LXIV); i) motivação dos atos decisórios penais (artigo 93, IX); j) duração razoável do processo penal (LXXVIII); l) legalidade da execução penal (XLV, LXVI, LXVII, LXVIII, LXIX, L, LXXV).
5. Direito do defendido à comunicação reservada com o seu defensor
Importante frisar, desde logo, que o atual Código de Processo Penal, em seu artigo 185, § 5.º, prevê que “Em qualquer modalidade de interrogatório, 15 o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor”. Idêntico direito está previsto na Lei n.º 7.210/1984 (LEP, artigo 41, inciso IX).
Essas previsões legais decorrem, sobretudo, da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 – Pacto de San José da Costa Rica, que passou a integrar o nosso sistema jurídico por força do imperativo constitucional (artigo 5.º, § 2.º) 16 e do Decreto Presidencial n.º 678, de 6 de novembro de 1992 – a qual em seu artigo 8.º, 2, d, estabelece o direito do acusado de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se com ele livremente e em particular.
As expressões “entrevista reservada” e “comunicar-se livremente e em particular” deixam claro, a nosso sentir, que esse caráter reservado ou particular da entrevista do defendido com o seu defensor está revestido de sigilo, de modo que o conteúdo dessa entrevista goza de inviolabilidade, só podendo ser revelado pelo próprio defendido, posto ser dever legal do advogado (artigos 34, VII, da Lei n.º 8.906/1994, e 154 do Código Penal) guardar para si tudo o que ouviu e sabe do cliente.
Pouco importa se o defensor é constituído ou público, ainda sim o investigado ou acusado tem o direito de se comunicar com ele de forma livre e particular, isto é, sem as presenças de terceiros no local da entrevista e de sistema de monitoramento do áudio ou da comunicação. Oportuno frisar que mesmo sendo a aludida entrevista particular realizada por meio de videoconferência (CPP, artigo 185, § 4.º), fundamental é que o conteúdo dessa comunicação restrinja-se apenas ao defensor e defendido.
A entrevista reservada pode ser exercida livremente pelo defendido a qualquer momento da persecução criminal ou da execução penal, devendo a autoridade pública (policial, judicial, prisional) cuidar para que a sigilosidade do seu conteúdo se mantenha preservada, fornecendo os recursos materiais (parlatórios condignos e sem monitoramento da comunicação, por exemplo), pois, como dito, ela é inviolável.
Não haveria sentido lógico algum a legislação citada tornar reservada ou particular a entrevista do defendido com o seu defensor se depois ela seria revelada, no todo ou em parte, pelos agentes públicos que a monitoram, sem decisão judicial. O ordenamento jurídico não é perfeito porque os seres humanos também não o são; porém, acredita-se que esse ordenamento tem um sentido lógico para o qual foi criado.
O desrespeito à entrevista particular ou à comunicação oral reservada, por meio do monitoramento estatal, implica diretamente na violação de pelo menos quatro dos mencionados direitos e garantias constitucionais de processo penal, quais sejam: a plenitude de defesa, a proibição do uso de provas ilícitas, o direito ao silêncio e a assistência de advogado.
É na comunicação reservada que o defendido leva ao conhecimento do defensor, detalhadamente, a sua versão sobre os fatos e as circunstâncias que lhes são atribuídos pelo Estado. Depois de tomar conhecimento do que lhe foi revelado, o defensor traça uma estratégia defensiva, erguendo teses, e, com a aquiescência do defendido, passa a materializá-las nos autos da investigação ou da ação penal. 17
É nesse instante, vale salientar, que o defendido faz revelações substanciais e comprometedoras ao seu defensor, cujas quais podem até implicar na segurança de ambos e de seus familiares, já que a questão poderia estar a envolver pessoas poderosas, do setor público e privado, como é comum acontecer, inclusive em todas as Regiões do país. Mesmo que as informações absorvidas do defendido, na entrevista reservada, sejam até certo ponto “irrelevantes” e digam respeito apenas a ele, ainda sim elas estão acobertadas pelo manto da inviolabilidade.
O desejado monitoramento pelo Estado dessa “entrevista reservada ou particular” – daí a efetiva necessidade de decisão judicial para tanto –, além de violar o sigilo da comunicação, também atinge o direito ao silêncio do defendido, cujo qual, ao revelar sua versão fática para o defensor, ainda que a título de desabafo, pois sabe da incidência do sigilo profissional, é posteriormente surpreendido nos autos (e hoje extra-autos) com a revelação do diálogo que confidenciou somente ao defensor.
Mas, se por ventura, na entrevista reservada e “monitorada“ pelo poder estatal, constar à confissão do defendido ou detalhes relevantes do delito a ele imputado, isso pode ser tido como prova contra ele, mesmo que tal monitoramento tenha sido determinado por decisão judicial? E essa prova é valida para efeito de condenação, uma vez silenciando o acusado por completo no feito? Diante do monitoramente, de que forma o defendido deverá proceder para se comunicar reservadamente com o defensor, visando elaborar sua defesa? Se o silêncio imperar nas entrevistas com os presos, por causa da possibilidade do seu monitoramento pelo Estado, qual milagre o defensor deve operar para dar efetividade ao princípio da plenitude de defesa? Além disso, os dados, as estratégias e teses defensivas reveladas à polícia e à acusação, por conta da monitoração da entrevista, não ensejam na violação do princípio da não auto-incriminação do defendido? Por fim, como é possível defender-se amplamente se o Estado tem conhecimento daquilo que o defendido falou e revelou ao seu defensor?
As indagações sobre essa questão são inúmeras. Destarte, não convence e não se justifica o argumento absurdo de que o monitoramento dos diálogos entre defensor e defendido ou preso se enquadra na política criminal da segurança pública, na medida em que essa forma poderia prever a prática de delitos e, sobremaneira, o fim do controle das “organizações criminosas” por presos. Essa alegação das autoridades públicas, que compartilham dessa visão retrograda e inconstitucional, é de toda genérica e discriminatória, dando a entender que são os advogados autênticos “pombos-correio” dos seus clientes. 18
Seja advogado, seja qualquer outra pessoa que tenha acesso ao preso ou com ele se comunica, deve ser alvo de intensa investigação policial quando o fim da comunicação ou entrevista com o preso apresenta fundadas suspeitas de fugir da estrita legalidade, especialmente. E o caminho a ser seguido pela polícia, notadamente quanto ao seu defensor, é a investigação inteligente, despreguiçosa e externa, ou seja, no cotidiano forense do advogado, e não na monitoração de suas conversas com o preso nas unidades prisionais e nas audiências por videoconferência.
A prevalecer essa visão estatal, no mínimo teratológica, dentro do Sistema Penitenciário nacional, quiçá um dia nas audiências criminais e julgamentos no Tribunal do Júri, quando do primeiro contato entre defensor e defendido, assim como nos Distritos policiais, deve os respectivos agentes públicos expandir essa “modalidade” de monitoramento ou de interceptação de conversas para as “visitas íntimas” 19 nas prisões, posto ser possível, naquele momento íntimo do preso com a visitante, ouvir-se algo que lhe comprometa criminalmente. Tudo em nome da investigação criminal e da segurança pública.
O Estado, paulatinamente, sob o pretexto de combater a “criminalidade organizada”, a todo custo, vem ampliando o número de violações a direitos e garantias dos investigados e dos acusados, principalmente. Chega-se ao ponto de nada mais ser surpreendente em termos de desrespeito à Lei Fundamental.
Quando o poder estatal defende publicamente o sacrifício dos direitos e garantias constitucionais do defendido, encurtando assim as investigações policiais para logo se chegar ao resultado que satisfaça o interesse da coletividade ou da sociedade, percebe-se que o Estado Democrático de Direito está mesmo na “UTI” (Unidade de Terapia Intensiva), diante dos sinais iminentes de falência parcial de alguns dos seus órgãos.
Ao contrário dos pensamentos retrógrados e desumanos, na investigação policial ou na busca pela produção de prova, o Estado Democrático de Direito não admite a adoção do popularmente conhecido “vale tudo probatório”, como a adoção da prova ilícita para condenar.
Existem critérios legais e científicos rigorosos a serem observados e seguidos pela investigação policial, notadamente na apuração dos crimes hediondos e assemelhados; de sorte que, se o Estado ainda pretende cumprir a sua função constitucional de entregar à sociedade uma prestação jurisdicional penal justa e democrática, deve resguardar e dar efetividade aos direitos e garantias do defendido, pois, do contrário, sem o fiel respeito à Constituição Federal será difícil se afastar ou se distinguir das nações totalitárias e involuídas.
A democracia processual penal se revela, em especial, com a efetividade da garantia do devido processo legal, a qual reclama rigorosa observação de todas as formalidades prescritas na legislação para o perfeito atingimento de sua finalidade solucionadora de conflitos de interesses socialmente relevantes, quais sejam, o punitivo e o de liberdade.
É Inadmissível a privação da liberdade sem a garantia consubstanciada num processo desenvolvido na forma que a lei estabelece, dotada de todas as garantias do processo legislativo. Esse é um postulado universalmente concebido e contemplado pelos ordenamentos jurídicos de todos os países que se personificam num Estado de Direito. 20
6. Violação às prerrogativas profissionais
O defensor, por conta do cotidiano forense criminal, acaba por desenvolver, dentre outras, duas qualidades substanciais para o bom desenvolvimento da defesa, são elas: saber ouvir atentamente o defendido e investigar os mínimos detalhes dos fatos que caracterizam ou não o tipo penal. Realmente, o ofício mais humano do advogado é o de ouvir o cliente, ou seja, de dar às almas inquietas o alívio de encontrar no mundo um confidente imperecível das suas inquietações. 21
No processo penal, em regra, essa audição do defendido a que se submete o defensor dá-se num lugar reservado na parte interna da unidade prisional, denominado de parlatório, onde o advogado se comunica reservadamente com o preso. Trata-se, na verdade, de uma prerrogativa profissional, prevista na Lei n.º 8.906/1994, artigo 7.º, III, 22 que decorre do artigo 133 da Constituição Federal, a qual tem o advogado como “indispensável a administração da justiça”, colocando-o no Capítulo “Das Função Essencial à Justiça”.
Portanto, a prerrogativa de comunicar-se pessoal e reservadamente com o preso, ainda que incomunicável, está constitucionalmente amparada, não sendo ela nenhum privilégio. Pelo contrário, as prerrogativas profissionais dos advogados são definidas como um conjunto de direitos e garantias que lhes é especificamente dirigido para o exercício livre da profissão ou ministério com interesse social. 23
A prerrogativa profissional em referência envolve também o caráter de sigilosidade do conteúdo da comunicação, como visto anteriormente, de sorte que, no exercício dessa prerrogativa, é vedado qualquer interferência ou impedimento de órgão estatal e de seus agentes. Nem mesmo o defensor, voluntariamente e sem justa causa, poderá quebra o sigilo da comunicação, sob pena de responder penal, cível e administrativamente.
No universo jurídico atual, o “direito ao sigilo”, destinado a proteger o segredo da pessoa e integra o rol dos direitos fundamentais do cidadão, cujos quais são invioláveis, inclusive em face do legislador infraconstitucional. O sigilo profissional, que resguarda a comunicação reservada com o defendido, é um dever legal imposto ao advogado (artigos 34, VII, da Lei n.º 8.906/1994, 24 e 154 do Código Penal 25) com o escopo de assegura a plenitude de defesa do cidadão defendido, protegendo-se o seu segredo.
A doutrina constitucional entende que o sigilo das comunicações não é somente um corolário da livre expressão do pensamento, mas também aspecto tradicional do direito à privacidade e à intimidade. Romper a confidencialidade dessa comunicação é frustrar o direito do emissor (do defendido) de escolher o destinatário do conteúdo de sua comunicação. 26
Tendo em conta esse cenário legal, pode-se afirma que o defensor está submetido a rigoroso dever de sigilo que se reveste de significativa relevância, sobremaneira pela garantia do direito de defesa, essencial à liberdade e à personalidade. 27 E esse direito de defesa, que é princípio de ordem pública, apenas pode ser exercido em toda sua plenitude com a garantia da inviolabilidade do segredo profissional, de maneira que o advogado está obrigado a guardar esse segredo, não só pela força da lei, como por dever fundamental e consciência profissional, superior à vontade. 28
O anterior Estatuto da Advocacia, Lei n.º 4.215/1963, mais especificamente nos artigos 87, V, e 103, viii, também impunha ao advogado o dever de proteção do sigilo profissional. Na preservação desse sigilo, vale ressaltar, muita das vezes reside não somente a segurança do cliente, mas quiçá a sua própria vida. 29
Diante da previsão legal da referida prerrogativa profissional, que busca dar efetividade aos sobreditos direitos e garantias do defendido, não pode o Estado violá-la sob o pretexto infundado de se estar investigando certa “organização criminosa” da qual o defensor seria suposto integrante ou sócio e não advogado no exercício do seu mister.
Para ultrapassar, legalmente, a prerrogativa do sigilo ou da inviolabilidade das comunicações do advogado, constante da Lei n.º 8.906/1994, artigo 7.º, II, 30 monitorando as suas conversas com o cliente, até mesmo no parlatório de unidade prisional, além de outras medidas legais, é de todo necessário que ele seja alvo da investigação criminal ou sujeito passivo na ação penal, conforme expressa exigência dessa mesma norma específica, artigo 7.º, § 6.º. 31
É preciso, portanto, que a decisão judicial, que objetiva monitorar a conversa reservada do advogado com o cliente, mesmo que na prisão, esteja muito bem fundamentada, demonstrando à presença dos requisitos processuais penais de materialidade e de indícios de autoria, além de especificar, pormenorizadamente, a finalidade da providência acautelatória judicial.
Nessa situação, não é mais o advogado que é alvo da busca da prova para investigação policial ou ação penal, mas sim o cidadão, que resvalou para o crime, não podendo ele valer-se da prerrogativa de inviolabilidade ou sigilo dos meios de exercício profissional. 32
Não havendo decisão judicial, devidamente motivada e pormenorizada, que retire o manto da inviolabilidade, somente para o caso em concreto, o agente público não poderá ter acesso ao conteúdo dessa comunicação e muito menos monitorá-la, pois, se assim proceder, violará tal prerrogativa, devendo ele responder por essa infração no âmbito administrativo, cível e penal.
É preciso asseverar, que o agente público, exceto por determinação judicial, como já mencionado, jamais poderá ter acesso ou monitorar a comunicação reservada ou particular do defensor com seu defendido. Isso porque o conteúdo dessa conversa, revestida de inviolabilidade e de natureza profissional, não lhe diz respeito – sequer para saciar a sua curiosidade –, nem mesmo ao órgão estatal para o qual serve.
Oportuno relembrar, que gabinetes de magistrados foram alvos de buscas e apreensões determinadas pela Justiça, 33 motivadamente, revelando assim que nem mesmo os membros do Poder Judiciário podem se valerem de suas prerrogativas (Lei Complementar n.º 35/1979, artigo 33) para infringir a norma penal.
Necessário assentar que o profissional do direito, portador de prerrogativas para o exercício de nobre função, não é um “marginal”; dessa forma, não pode ser ele presumido ou tratado como tal. Entretanto, ao infringir a lei penal, e nessa qualidade de infrator, ele não pode lançar mão de certas prerrogativas, exclusivas do operador do direito, para obstacularizar ou impedir o Estado de buscar provas com vistas a comprovar determinada prática delitiva.
Finalmente, deve o magistrado observar os princípios da inércia e imparcialidade que são corolários do processo penal democrático e justo, decidindo apenas quando expressamente provocado pelas partes – Ministério Público e Defesa – tanto de forma cautelar como no mérito da ação penal.
7. Conclusão
É um dever constitucional do Estado investigar e punir todas às praticas tidas como criminosas, independentemente de que sejam seus autores. Para tanto, a Constituição Federal lhe impõe determinadas regras e critérios normativos rigorosos que devem ser cuidadosamente observados, sob pena de ampla responsabilização do agente público.
A cidadania e a dignidade humana, sobretudo, como princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, assim como os valores constitucionais eleitos sociedade representada, exigem dos órgãos estatais e de seus agentes uma permanente vigilância.
O ordenamento jurídico pátrio gravita em torno da dignidade humana, indistintamente, sendo que, nas suas relações internacionais, o Estado brasileiro tem como prevalência os direitos humanos.
Os bens jurídicos penalmente tutelados, quando violados, dão origem à persecução penal, a qual é toda norteada pelos princípios e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal. Vale dizer, com isso, que a Lei Maior fundamenta todas as normas de Direito Penal e Processual Penal.
O Direito Processual Penal é o instrumento jurídico pelo qual às garantias fundamentais esculpidas na Constituição Federal se materializam, é o verdadeiro Direito Constitucional aplicado; de modo que a violação ou a inobservância dos seus dispositivos pelos agentes e órgãos estatais implica na ausência de aplicabilidade da Lei Fundamental.
Durante a persecução penal, não é permitido ao Estado produzir provas ou combater a “criminalidade organizada” infringindo dispositivos legais, ora ignorando os direitos e garantias fundamentais do defendido ou do preso, ora violando as prerrogativas do advogado, haja vista que todas as suas ações devem estar resguardadas de estrita legalidade.
O monitoramente da entrevista ou da comunicação reservada entre o defensor e o preso, e vice-versa, sacrifica, de uma só vez, direitos, garantias e prerrogativas. O sacrifício substancial desses predicados que o Estado pretende impor, em prol de um “combate” a “criminalidade organizada”, desequilibra o sistema jurídico processual penal e torna-o antidemocrático.
O Desrespeito à democracia processual penal, decorrente das garantias constitucionais historicamente conquistadas pela sociedade contemporânea, afronta o princípio fundamental da dignidade humana do defendido e de seu defensor, na medida em que o primeiro é impedido de se defender plenamente, enquanto o segundo de exercer livremente constitucional profissão regulada por lei.
Às prerrogativas dos advogados, doutrinariamente definidas como um conjunto de direitos para o efetivo exercício da função constitucional essencial à Justiça – e longe de ser “privilégios” –, são indispensáveis ao exercício da plenitude de defesa do defendido.
A manutenção do sigilo da comunicação pessoal e reservada do advogado com o cliente, também tem como característica essencial à preservação da integridade física de ambos e de seus familiares, posto ser comum o conteúdo dessa entrevista ensejar substancial perigo, se revelado ou tornado público.
Tanto as prerrogativas do defensor como os direitos e garantais fundamentais do defendidos cedem diante de decisão da Justiça Criminal motivada e pormenorizada, com a observação rigorosa e integral dos requisitos processuais penais de materialidade e de indícios de autoria.
O monitoramento da comunicação oral do advogado com o preso, realizado pelo agente estatal, sem fundada e pormenorizada determinação judicial, é de todo arbitrário e delituoso, requisitos próprios do Estado autoritário que não respeita a norma fundamental, resultando assim em manifesta violação de sigiloso profissional tutelado pela Constituição Cidadão e pelo Código Penal.
A investigação policial sempre dispõe de outros eficientes e legais meios ou instrumentos investigatórios para obtenção da prova (lícita) almejada. Mas, por vezes, as pressões de políticos, da sociedade, da mídia e, enfim da opinião pública, forçam os investigadores a encurtarem a longa jornada investigativa para, sem qualquer pudor, violarem as normas acima mencionas, no intuito de se apresentar resultados imediatos.