1. Algumas considerações gerais
Tramita em regime de prioridade na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei – PL n.º 2.330/2011, (1) de autoria do Poder Executivo, denominado de “Lei Geral da Copa”, dispondo sobre as medidas relativas à Copa das Confederações FIFA de 2013 e à Copa do Mundo FIFA de 2014, que serão realizadas no Brasil (artigo 1.º). Tal Projeto tem como finalidade (i) conceder aos Símbolos Oficiais da FIFA a qualidade de “Marca de Alto Renome” e “Marca Notoriamente Conhecida”, (ii) bem como definir os crimes relacionados às competições: uso indevido de Símbolos Oficiais, Marketing de Emboscada por Associação e Marketing de Emboscada por Intrusão.
Por meio de Ato da Presidência da Câmara, de 30 de setembro de 20011, foi criada a Comissão Especial destinada a emitir parecer ao aludido PL, composta de vinte e cinco membros titulares e de igual número de suplentes.
O artigo 2.º, inciso I, do PL define a FIFA (“Fédération Internationale de Football Association”) como uma associação suíça de direito privado, entidade mundial que regula o esporte de futebol de associação, e suas subsidiárias não domiciliadas no Brasil. Como se vê, a sobredita Instituição controladora do futebol no mundo é tratada no PL como uma pessoa jurídica de direito privado.
Significa dizer, com outras palavras, que a FIFA é uma empresa privada internacional, como tantas outras que investem no Brasil, com fins lucrativos muito bem definidos, inclusive com uma projeção de ganhos ou de lucros que se supera a cada mundial de seleções. E em “campos” brasileiros ela também pensa em bater (faturar) um bolão, com a substancial contribuição ou “jogadas” (políticas) da grande maioria dos “craques” do Parlamento Nacional, previamente escalados e com o “bicho” garantido antes mesmo de pisarem o gramado.
Os eventos futebolísticos da FIFA – Copa das Confederações de 2013 e Copa do Mundo de 2014 –, não se pode deixar de reconhecer, são eventos excessivamente lucrativos que transformam cidades e deixam um legado, de modo que, sobretudo por isso, são bastante disputados por vários países que investem, prometem muito e até corrompem para poder promoverem esses eventos.
As motivações que despertam os interesses de várias nações por tais eventos são, basicamente, os ganhos econômicos e sociais. A impressão que se passa ou que se tem é que determinada Nação será completamente outra durante e depois da realização dos referidos eventos. Pelo menos, em tese, é isso, pois existem grupos financeiros e investidores que ficam cada vez mais ricos em detrimento da esperança de um povo, talvez, iludido na sua essência.
Será que o último mundial de 2010 realizado na África do Sul deixou ali um verdadeiro legado, promoveu de fato a ampliação do turismo, fortaleceu a economia do país, ou isso foi mesmo um sonho que se transformou num pesadelo com o fim dos eventos (“presente de grego” para os sul-africanos)?
Seja como for, 2010 é passado. O foco da FIFA agora é tentar contribuir para o desenvolvimento do Brasil de forma mais rápida do que o próprio Programa de Aceleração de Crescimento do Governo Federal (pac). Isso é fantástico: até 2014, por força dos eventos da FIFA, os problemas com os transportes aeroviário, rodoviário e ferroviário serão resolvidos ou atenuados, assim como surgiram inúmeras arenas esportivas. Mas e as outras questões sociais do cotidiano dos brasileiros?
Esses eventos são mesmos incríveis. A título de exemplo, o Município de Salvador, BA, padece a onze longos anos com a construção “faraônica” de seis quilômetros de metrô sem que ainda se tenha um prazo para sua conclusão. Entretanto, em 2013, também por conta da Copa de 2014, os baianos receberão uma arena esportiva de “primeiro mundo”, “sem superfaturamento” e “respeitando o meio ambiente local”. E o metrô estará pronto até lá? (2)
Inexiste almoço gratuito no mundo dos negócios (“business”), pelo que a fifa, na escolha das Sedes de seus eventos, notadamente a da Copa, leva sempre em consideração, ou exclusivamente, o proveito econômico que o país escolhido pode lhe proporcionar. Compromissos de legado social, desenvolvimento estatal, etc., não estão previstos em quaisquer das cláusulas contratuais que a FIFA praticamente impõe aos países que querem sediar seus eventos. É uma espécie de “contrato de adesão”. E isso nem poderia constar dos contratos assinados, na medida em que àquela instituição internacional privada prima somente pela defesa dos seus interesses particulares nos eventos que promove.
E nesse aspecto, como empresa privada detentora dos direitos dos disputados eventos sobreditos, a FIFA impõe suas regras aos países interessados, sobremaneira por conta demanda, a ponto de exigir do país contratante, sem qualquer constrangimento, uma reforma de sua legislação cível e penal para assim garantir seus lucros, como parece ter acontecido com Brasil. A questão é que o nosso Governo Federal não combinou nada com o povo brasileiro ao assinar o “contrato leonino”.
Não basta para o Governo brasileiro, como costume, apenas que o povo pague a conta deste “negócio da china”, mas também que ele entenda que, por determinado período, certos direitos serão suspensos (Estatuto do Torcedor, por exemplo) e que dispositivos penais serão criados, especialmente, para cumprir um contrato com uma instituição privada. Aliás, os contratos assinados com a FIFA não deveriam estar à disposição de todos (traduzidos), indistintamente, tendo em vista os princípios da publicidade e da moralidade (Constituição Federal, artigo 37, caput)?
Vale ressaltar, contudo, que o pool de ministérios (3) ao encaminhar a minuta do Projeto Lei à Presidência da República, em 16 de setembro de 2011, deixa assente no item 9 da Mensagem, que o ” Projeto de Lei Geral, dessa forma, atende aos compromissos assumidos pelo Brasil com a FIFA. (4) Está, pois, apto a ser enviado ao Congresso Nacional”.
A FIFA já alcançou a isenção tributária, ou seja, foi agraciada com a desoneração de tributos pela Lei n.º 12.350/2010. (5) Agora, com a tramitação do PL em questão, ela busca também a absoluta isenção do recolhimento das custas devidas ao Poder Judiciário, assim como vedar a condenação em custas e despesas processuais. É o que consta expressamente no artigo 38, do PL n.º 2.330/2011:
A FIFA, Subsidiárias FIFA no Brasil, seus representantes legais, consultores e empregados são isentos do adiantamento de custas, emolumentos, caução, honorários periciais e quaisquer outras despesas devidas aos órgãos da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho, da Justiça Militar da União, da Justiça Eleitoral e da Justiça do Distrito Federal e Territórios, em qualquer instância, e aos tribunais superiores, assim como não serão condenados em custas e despesas processuais, salvo comprovada má-fé.
Diante de tantas benesses por dois eventos esportivos futebolísticos que não vão mudar o país – ainda que a seleção nacional seja campeã –, senão deixar mais rico uma considerável parte dos empresários e políticos brasileiros, não seria nem um pouco ofensivo indagar a FIFA se ela, além do acarajé gratuito, também não quer ficar com o tabuleiro da baiana.
2. A FIFA e a sua legislação penal de exceção para a Copa de 2014
Como visto, o PL n.º 2.330/2011 decorre de uma obrigação contratual assumida pelo Brasil com a FIFA, conforme afirmaram os ministros que o assinaram e o encaminharam à Presidência da República.
Destarte, além da criação de novos tipos penais com vigência até 31 de dezembro de 2014 (artigo 22), o mencionado PL também pretende adequar todas as cláusulas contratuais – os interesses da FIFA na realidade – à legislação brasileira, isso sem nenhum pudor ou vergonha. Provavelmente, nem mesmo os advogados da referida entidade esportiva internacional teria melhor defendido os interesses do seu constituinte.
O mais grave nesse contexto não é a ambição ou a pretensão lucrativa da FIFA como empresa privada, mas sim a manifesta ausência do Ministério da Justiça e da Advocacia Geral da União quanto a analise da constitucionalidade, legalidade e moralidade do PL. E isso está bem claro na Mensagem encaminhada a Presidente, em 16 de setembro último, que acompanha tal PL.
Logo no item 2 da citada Mensagem, por exemplo, os aludidos ministros da FIFA, ou melhor, do Governo brasileiro, asseveram que: “Tais medidas se fazem necessárias para a efetivação dos compromissos assumidos pelo Governo Federal perante a FIFA, quando da escolha do País como sede das Competições“.
No Estado Democrático de Direito, onde os direitos e garantias fundamentais resguardam, sobretudo, os princípios basilares da soberania, dignidade humana e cidadania (CF, artigo 1.º, incisos I, II, e III), é inadmissível a suspensão ou a redução de direitos, bem como a criação de tipos penais temporários, somente para atender o contrato assinado com uma instituição de direito internacional privado e assim garantir a realização de seus eventos comerciais.
Nesse contexto, faz-se necessário, desde logo, estabelecer uma singela distinção doutrinaria entre a “lei penal temporária e lei penal excepcional”, prevista no artigo 3.º, do Código Penal. A primeira é àquela que traz expressamente em seu texto o dia do início e do término de sua vigência; ao passo que a segunda é lei criada para satisfazer determinados interesses do Estado e da comunidade em face de situações anormais ou emergenciais proveniente de fatos da natureza (terremotos, inundações). (6)
Estabelece-se esta diferenciação porque o PL cotejado almeja criar dispositivos penais temporários, com vigência até 31 de dezembro de 2014, para proteção e exploração dos direitos comerciais exclusivos da FIFA. Tais tipos penais estão denominados como “Dos Crimes Relacionados aos Eventos”, no caso as Copas das Confederações e do Mundo. Eis as redações:
Utilização indevida de Símbolos Oficiais.
Art. 16. Reproduzir, imitar ou falsificar indevidamente quaisquer Símbolos Oficiais de titularidade da FIFA:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Art. 17. Importar, exportar, vender, oferecer, distribuir ou expor para venda, ocultar ou manter em estoque Símbolos Oficiais ou produtos resultantes da reprodução, falsificação ou modificação não autorizadas de Símbolos Oficiais, para fins comerciais ou de publicidade, salvo o uso destes pela FIFA ou por pessoa autorizada pela FIFA, ou pela imprensa para fins de ilustração de artigos jornalísticos sobre os Eventos:
Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.
Marketing de Emboscada por Associação
Art. 18. Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a ações de publicidade ou atividades comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica.
Marketing de Emboscada por Intrusão
Art. 19. Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos Locais Oficiais dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária:
Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.
Art. 20. Nos crimes previstos nesta Seção somente se procede mediante representação da FIFA.
Art. 21. Na fixação da pena de multa prevista nesta seção e nos artigos 41-B a 41-G da Lei no 10.671, de 15 de maio de 2003, quando os delitos forem relacionados às Competições, o limite a que se refere o §1.º do art. 49 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, pode ser acrescido ou reduzido em até dez vezes, de acordo com as condições financeiras do autor da infração e da vantagem indevidamente auferida.
Art. 22. Os tipos penais previstos nesta Seção terão vigência até o dia 31 de dezembro de 2014.
Vale lembrar, contudo, que os futuros infratores destes prováveis tipos penais temporários e de menor potencial ofensivo (Lei n.º 9.099/1995, artigo 61) somente responderão ao respectivo Termo Circunstanciado se houver representação expressa da FIFA, ou seja, o prosseguimento ou não do procedimento criminal fica ao livre critério da vítima, que é pessoa jurídica de direito privado (artigo 20 do PL).
Quanto à capacidade processual da pessoa jurídica de exercer a representação penal, o vigente Código de Processo Penal, em seu artigo 37, admite tal possibilidade. No entanto, há divergência quanto a esse direito de representatividade no caso de ação penal pública incondicionada.
Dessa forma, identificam-se duas situações substanciais que implicam na inconstitucionalidade do PL em questão: (i) ofensas ao princípio constitucional da isonomia e da legalidade penal; (ii) e a inaplicabilidade da lei temporária para a situação prevista no PL.
A inconstitucionalidade do sobredito PL é manifesta. Isso porque o nosso ordenamento jurídico pátrio, a partir da Constituição Federal, não autoriza a construção ou criação de leis penais, sobremaneira em caráter temporário, especificamente para atender os interesses de uma determinada pessoa jurídica (a FIFA) ou uma categoria com interesses privados (empresas associadas).
Desafia, assim, o PL o princípio constitucional da igualdade (CF, artigo 5.º, caput), (7) haja vista que todos são iguais perante a lei, e, nesse caso, o PL em questão está claramente desigualando os iguais, na medida em que a demais pessoas jurídicas – estrangeiras ou não – que possuem contratos com Brasil também poderia usufruir desses privilégios legais dos quais a FIFA quer desfrutar.
Os dispositivos penais constantes do PL em tela possuem uma redação bem cristalina, desembaraçada e sem dupla interpretação no que tange a proteção de bem privado ou comercial da FIFA, isto é, o Projeto de Lei que pretende criar novos tipos, ainda temporários, satisfaz unicamente interesse de particular.
Por sua vez, como é do conhecimento meridiano, os fins imediatos do Direito Penal é proteger bens jurídicos (relevantes) da pessoa e da comunidade. Ou, ainda, na visão Claus Roxin, (8) “a função do Direito Penal consiste em garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos”. Este mesmo doutrinador alemão assevera também que em um Estado Democrático de Direito as normas jurídicas de natureza penal devem perseguir somente a finalidade de assegurar aos cidadãos uma coexistência pacífica e livre, sob a garantia de todos os direitos humanos.
De qualquer ângulo que se possa enxergar a função do Direito Penal contemporâneo, a partir de um sistema jurídico Democrático de Direitos como o brasileiro, é manifestamente inadmissível, autoritário, repugnante e teratológico que se proponha um retrocesso nesse avanço ao se apresentar um PL que tenta resgatar a figura do “Direito Penal privado”, exclusiva e para o deleite de uma entidade esportiva internacional particular.
No que diz respeito ao principio da legalidade penal, depreende-se que as redações dadas aos tipos penais são abertas, amplas, sem a indispensável taxatividade da conduta, o que acarreta insegurança jurídica para o aplicador do Direito, bem como contraria o princípio da proporcionalidade, já que não é dado tratar da mesma forma condita tão dispares no seu aspecto formal e substantivo.
Oportuno assinalar que a legislação civil e penal brasileira em vigor certamente cumprirá o seu papel, assim como tem cumprido com as demais entidades privadas que possuem contratos com o Estado brasileiro. Ademais, é o Contrato que tem que se ajustar ou ser ajustado à norma vigente do País onde os eventos ocorreram (Brasil) e não o contrário.
A edição de “lei penal temporária”, para caso em concreto do PL, também não encontra qualquer justificativa no nosso ordenamento normativo, posto exigir essa modalidade de lei penal uma circunstância semelhante àquela exigida para a “lei excepcional”, qual seja, a emergência, a anormalidade social ou a própria excepcionalidade necessária a sua edição.
Em outras palavras, é difícil dissociar a lei temporária da lei excepcional, pois a lei temporária é necessariamente excepcional e vice-versa, sendo, portanto, normas especiais editadas claramente para viger em situações anormais ou por certo tempo, conforme enfatiza Celso Delmanto. (9) Importante destacar que legislador penal ao redigir o artigo 3.º, do Código Penal, adotou a conjunção ou, pretendendo com isso, a nosso sentir, criar apenas uma situação de excepcionalidade legal, com ou sem prazo de vigência.
Nesse sentido, percebe-se que inexiste razão plausível para que o pleito da FIFA – criação de tipos penais por meio do aludido PL – não decole, em especial por não ter o seu Projeto de Lei apontado expressamente à emergência, necessidade ou excepcionalidade que justificaria tal lei temporária.
3. conclusão
O PL n.º 2.330/2011 esbarra, assim, na constitucionalidade e legalidade, haja vista que o ordenamento jurídico brasileiro não autoriza a edição norma penal excepcional ou temporária para atender situações puramente comerciais voltadas apenas à proteção e garantia do lucro de determinada pessoa jurídica de direito privado internacional.
É difícil de imaginar, mas aconteceu: o Congresso Nacional e o Governo brasileiro parecem terem perdido, por completo, o bom senso e a razoabilidade no efetivo exercício de suas constitucionais atividades.
A continuarem agindo assim, em manifesta defesa do interesse privado em detrimento do público, corre-se o risco de “venderem o País” e aprovarem uma Lei posterior para convalidar o ato.
A FIFA necessita entender, por mais que queira impor suas regras aos países interessados na realização dos seus eventos, que no Estado Democrático e de Direito – onde a dignidade humana esta no centro do ordenamento normativo –, todas as instituições públicas, paraestatais e privadas exercem uma fiscalização mútua, justamente para frear, sobremaneira, as investidas contra os princípios da soberania e da segurança jurídica.
Se esse é o sacrifício legal ou contratual que o Estado brasileiro necessita fazer para aqui realizar os eventos da FIFA, melhor que o País devolva a esta entidade esportiva o seu “presente de grego” em prol da Democracia e da preservação dos princípios, direitos e garantias fundamentais do seu povo.