Os membros do Tribunal
do Júri também gozam do foro privilegiado.
Edson
Pereira Belo da Silva, advogado, professor
de processo penal, pós-graduado em direito, autor de obras jurídicas
inéditas, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia,
membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista
e palestrante ([email protected]).
01. Considerações
iniciais.
O tema proposto não tem precedente jurisprudencial
ou doutrinário, segundo revelou nossas pesquisas. Talvez sequer tenha
algo escrito nesse sentido. Mas caso isso realmente se confirme, acreditamos
que a razão primordial deve-se ao fato de que jamais um dos membros
que compõe o egrégio Conselho de Sentença, em pleno exercício da função
de Juiz do fato, ter sido autor de um delito.
Não temos dúvida alguma que toda a comunidade
jurídica que cultua e até busca resgatar a ampliação da competência
do Tribunal Popular gostaria de conhecer um caso prático, como, por
exemplo: (i) “jurado agride física e verbalmente réu, sem justo motivo
e no curso do julgamento, acusado de violentar e matar crianças”;
“jurado agride fisicamente um dos seus colegas, no exercício da função,
após intensa discussão sobre futebol”; (iii) e “júri é corrompido,
financeiramente, para absolver réu”.
Tantos outros exemplos, hipotéticos, poderiam
ser dados apenas para justificar o foro por prerrogativa da função,
caso o magistrado popular, no desempenho do seu mister, fosse o sujeito
ativo de uma infração penal. No entanto, o fato de não ter-se encontrado
precedente nesse sentido – o que seria negativo para a instituição
Júri – só reforça ainda mais o pensamento democrático de que os membros
do Conselho de Sentença são mesmos dignos da função constitucional
que exercem.
O Júri, eventualmente, pode decidir de forma
contraria as provas dos autos (artigo 593, inciso III, alínea “d”,
do CPP), até porque inexiste instituição jurídica que não cometa os
seus erros ou pecados; (1)
todavia, tem sabido os membros do Júri observar, através dos tempos,
o direito de defesa do acusado (garantia da plenitude de defesa),
ouvindo-o atentamente por meio do seu defensor, o qual também sempre
gozou de prestígio perante os magistrados popular.
Muitas são as qualidades do Júri que quase
não se percebe no juiz togado. Mas as duas principais delas são: a
experiência de vida e o julgamento de consciência. O magistrado togado
julga o réu como réu, pois ele carrega em sua alma a essência da superioridade
estatal, deixando bem claro nos autos que o julgador em tudo se distingue
do infrator acusado; ao passo que o juiz popular vê o réu como o semelhante
que sofre uma acusação (um mortal igual a ele), decidindo, assim,
a sua liberdade conscientemente. O julgador técnico está a uma lua
de distância da realidade em que viveu e vivi, encastelado em seu
gabinete e condomínio, distante, por vezes, até de si mesmo; enquanto
que magistrado leigo convive com realidade brasileira, de modo que
ele sente e sofre na pele todos os problemas sociais.
Aliás, ultimamente, é a magistratura togada
quem tem freqüentado o “noticiário policial”, tendo em conta as inúmeras
denúncias graves propostas pelo Ministério Público nas Justiças Federal
e estadual. (1-A)
A autoridade do Júri – que se sobrepõe,
inquestionavelmente, a do juiz togado – advêm do texto constitucional,
notadamente do parágrafo único, do seu artigo 1.º, onde o respectivo
legislador deixou assentado: “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição”. Na realidade, a “teria na prática é outra coisa”.
É que o exercício do poder de julgar, de
decidir os objetos jurídicos mais relevantes da vida em sociedade,
paulatinamente, veio sendo retirado da competência do povo e passado
para a competência do julgador técnico, sem que o dono do poder (o
povo) fosse ao menos consultado, cabendo-lhe atualmente e apenas,
julgar os crimes dolos contra a vida e os conexos (artigos 5.º, inciso
XXXVIII, alínea “d”, da CF, e 78, inciso I, do CPP).
Para quem no passado julgou as causas cíveis
e penais, os crimes de imprensa (Júri de Imprensa) e os contra a economia
popular (Júri de Economia Popular), (2) restou aos juízes tidos
como leigos o julgamento dos delitos mencionado acima, apesar da magistratura
togada, na sua quase unanimidade, ainda reclamar a supressão do Tribunal
Popular.
Com se vê, o dono do poder de mandante passou
a mandatário, subserviente daquele que legitimamente não o representa:
o juiz togado. Daí, portanto, não ser possível, na prática, dizer
que o povo está representado no Poder Judiciário, sobremaneira quando
ele tem sido afastado quase que integralmente de tal Poder.
Destarte, mesmo com todas essas adversidades
– que poderia ser tachada de “golpismo” – a instituição do Júri Popular
sobrevive bravamente.
02. Garantia
do foro por prerrogativa da função.
O primeiro fundamento legal para a existência
do Tribunal Popular, conforme visto acima, é o artigo 1.º, parágrafo
único, da Carta da República, que assevera ser o povo o dono de
todo o poder, nos termos da referida Constituição. Mais adiante,
o legislador constituinte, dentro do Título “Dos Direitos e das Garantias
Fundamentais”, artigo 5.º, inciso XXXVIII, reconheceu a Instituição
do Júri, com a organização que lhe der a lei. Esses são os dois momentos
substancias do Júri dentro da Lei Maior.
Julgar mais ou menos delitos, inclusive
os seus representantes infratores, é uma questão que cabe única e
exclusivamente ao povo decidir – detentor de todo Poder – e não aos
juízes togados ou aos parlamentares que aprovam leis na madrugada
quando a grande maioria da sociedade está repousando.
Exercendo diretamente o seu poder de julgar
o próximo, como juiz natural de todas as causas que é indistintamente
(por que todo poder lhe pertence), o povo toma assento na Tribuna
do Júri como autêntico magistrado para dizer o direito. E o diz com
sua consciência de quem julga melhor do que juiz togado.
Nessa linha de pensamento, entende-se que
ao povo – juízes dos juízes – devem ser dadas todas as honrarias,
dentre elas o foro por prerrogativa da função para o caso de vir praticar
delito no exercício da função de julgador popular, consoante tentamos
exemplifica no item 01 deste simplório artigo. Mas isso seria até
desnecessário, porque o povo não pode pedir aquilo que ela já tem:
“todo o poder”. Logo, o foro por prerrogativa da função lhe pertence,
naturalmente ou por razoabilidade.
O sistema como posto, protege os representantes
do povo e os agentes políticos, (3) mas não resguarda o dono
do poder no seu pleno exercício de juiz popular. Vale dizer, que o
patrão (o povo), representado na figura dos membros do Júri, se vier
a cometer um delito no curso de julgamento que aprecia, irá ser julgado
pelo juiz singular. Por sua vez, se o seu empregado (o juiz técnico)
for o sujeito ativo de uma infração penal será ele julgado pelo Tribunal
togado.
Eis aí uma questão surrealista: “quem pode
o menos, pode o mais”; “quem pode o mais, não pode o menos”. E ainda
ensinam que vivemos numa democracia plena. Voltemos, então, a enfatizar:
“a teoria na pratica é outra coisa”.
Em não sendo relevante os sobreditos argumentos
para os críticos do Direito, lembremos que o Tribunal do Júri é um
órgão do Poder Judiciário dos Estados, assim como o Juiz de Direito
o é, constando tal instituição nas Constituições dos Estados, “verbis
gratia”, São Paulo (artigo 54, inciso III), Rio de Janeiro (artigo
151, inciso III), Minas Gerais (artigo 112), Rio Grande do Sul (artigo
91, inciso IV), Paraná (artigo 93, inciso III). (4)
A primeira vista, parece que os membros
do Júri não é um órgão dos Tribunais de Justiça dos Estados por não
constar essa circunstância dos respectivos textos constitucionais;
porém, não há como dissociar o Tribunal Popular dos jurados. Aquele
não subsiste sem estes. Se o Júri é um órgão dos Tribunais estaduais,
consoante exemplificado, de igual forma, os seus membros gozam de
tal status, isto é, o jurado integrante do Conselho de Sentença também
é um órgão das Cortes de Justiça dos Estados.
Vê-se, nesse passo, que as Constituições
Estaduais em referência foram além da própria Carta Federal (artigo
92), à qual foi omissa ao deixar de enumerar o Tribunal do Júri como
um dos órgãos do Poder Judiciário. (5)
O legislador constituinte, com isso, deixou transparecer que àquela
instituição popular – revestida de garantia constitucional – não exerce
função jurisdicional, ao passo que o Conselho Nacional de Justiça
(cuja função é basicamente disciplinar e não jurisdicional, artigo
103-B, § 4.º, da CF) não padece dessa mesma omissão enumerativa teratológica.
É manifesto o contra-senso do legislador:
o Tribunal Popular (juízes leigos), onde o povo exerce diretamente
todo seu poder, não consta na Constituição Federal como órgão do Poder
Judiciário; enquanto que os demais órgãos judiciais enumerados no
artigo 92, os quais servem ao povo, foram devidamente lembrados. Nem
mesmo na Lei Orgânica Nacional da Magistratura (LC n.º 35/75) cuidou
o legislador de inserir o Júri como órgão do Judiciário Nacional.
Apesar dessa grave inobservância legislativa
ao dono de todo o poder, não se retira dele o direito ao foro por
prerrogativa da função no efetivo exercício da magistratura popular,
sobretudo quando a Lei Processual Penal, em seu artigo 438, equipara
os juízes do fato com os magistrados togados, no tocante a responsabilidade
por crimes praticados contra Administração em geral (por exemplo,
artigos 316, 317, §§ 1.º e 2.º, e 319, do Código Penal).
Assevera Guilherme de Souza Nucci, ao cotejar
o citado dispositivo da norma processual penal, que a “equiparação
aos juízes togados é mais um fator que demonstra pertencer o Tribunal
do Júri ao Poder Judiciário, já que seus integrantes leigos, assim
como os juízes de direito, respondem por crimes praticados por funcionário
público contra a Administração em geral”. (6)
Também comentando o artigo 438, do Código
de Processo Penal, Eduardo Espínola Filho lecionava que os deveres
e a responsabilidade dos jurados equiparam-se aos dos juízes, “cujas
funções exercem no caso particular, os jurados tem as mesmas responsabilidades
destes, quanto ao desempenho fiel, correto honesto da sua importante
função”. (7)
Oportuno assinalar, ainda, o festejado pensamento
de Magarinos Torres, (8) sobre essa mesma questão, quando ainda vigia o revogado
Decreto-Lei n.º 167 de 5 de janeiro de 1938 (primeira lei do júri):
“O que a nova lei acrescentou às disposições gerais vigentes, foi
apenas a equiparação, que nestas era implícita, dos jurados aos magistrados
de ofício”.
A responsabilidade dos integrantes do Conselho
de Sentença, conforme visto, equipara-se ao do juiz presidente do
Júri. Por sua vez, o magistrado popular não julga somente questões
de fato, segundo tem pregado torrencialmente doutrina e a jurisprudência;
muito pelo contrário, o membro do Júri é Juiz do fato e de Direito,
isso porque ele julga também matéria de direito, por exemplo, ao votar
os inúmeros quesitos relativos às teses de “legítima defesa” e “inexigibilidade
de conduta diversa”, valendo ressaltar que essa última tese é uma
construção doutrinária e jurisprudencial.
Outro sinal de igualdade entre o magistrado
togado e o juiz popular nos é dado pelo artigo 295, incisos VI e X,
do Código de Processo Penal, o qual dispõe que ambos os julgadores
só serão recolhidos em “quartel ou em prisão especial” quando presos
provisoriamente. Tal disposição legal, sob a nossa ótica, deixa assente
que os juízes que compõem o Júri (o togado e os leigos) possuem os
mesmos direitos em caso de prisão cautelar.
Nota-se, assim, modestamente, que são sólidos
os fundamentos expendidos no sentido de que ao membro da magistratura
popular, no pleno exercício da função, é garantido o foro por prerrogativa
da função quando ele for autor de delito, como também é uma prerrogativa
(artigo 96, inciso III, da CF) do juiz presidente do Conselho de Sentença,
exercendo ou não a sua função.
Sustentar essa tese pode levar, eventualmente,
a comunidade jurídica interpretar que estar-se na contramão daquilo
que a sociedade – a voz das ruas ou a opinião pública notadamente
– há muito tempo vem reclamando: o fim do que se apelidou de “foro
privilegiado” para determinadas autoridades. Certamente, parece ser
esse o melhor destino para o foro especial.
Destarte, em homenagem ao espírito democrático
ainda pouco perceptível no sistema jurídico pátrio, acredita-se que
melhor seria submeter todos os servidores do povo e os agentes políticos
acusados da prática delitiva ao crivo do egrégio Tribunal do Júri,
conforme ocorre nos Estados Unidos da América por força do artigo
III, Seção 2, número 3, e da VI Emenda Constitucional. (9)
Ocorre, no entanto, que até chegar esse
ansioso momento – amadurecimento da democracia ou o iluminismo pleno
e acabado – o sol pode não mais estar raiando sobre as nossas cabeças
e os poetas terem se extinguido diante da impossibilidade de namorar
a lua e paquerar as estrelas.
No concerne ao foro competente para julgar
o jurado infrator, aplicar-se-á aquele próprio do juiz togado que
preside o Júri, no caso Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.
Conclui-se, portanto, que apesar de não estar
expressamente previsto no nosso direito pátrio, é uma garantia do
magistrado popular o foro por prerrogativa função no efetivo exercício
dessa relevante atividade jurisdicional indiscutivelmente democrática,
devendo ser ele julgado pelo respectivo Tribunal competente para julgar
o juiz togado presidente do Júri.
(1) Nesse sentido, já asseverava Rui Barbosa: “As argüições fundadas
contra o Júri não são maiores, entre nós, do que as queixas oferecidas
contra a magistratura togada”. Em O
júri sob todos os aspectos. Rio Janeiro: Editora Nacional de
Direito, 1950, p.18.
(1-A) https://conjur.estadao.com.br/static/text/59333,1. Acesso em
23/10/2007.
(2) Silva, Edson Pereira Belo da. Tribunal
do júri: ampliação de sua competência para julgar os crimes dolosos
com evento morte. São Paulo: Iglu Editora, 2006. p 48.
(3) “’Os agentes políticos’ exercem funções
governamentais, judiciais, quase-juidiciais, elaborando normas,
conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência
nos assuntos de sua competência”. Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. 22.ª ed. São Paulo: Malheiros,
197. p. 73.
(4) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/principal.htm.
Acesso em 23/10/2007.
(5) Nesse sentido, ver magistério de fôlego
do professor Hermínio Alberto Marques Porto. Júri: procedimento e aspectos do julgamento: questionários. 12.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 25-30.
(6) Em Código de processo penal comentado. 3.ª ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 701.
(7) In
Código de processo penal
brasileiro anotado. 3.º ed. v. IV. Rio de Janeiro: Editor Borsoi,
1955. p 375.
(8) Em Processo penal do júri no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto,
1939. p. 109.
(9) Ver João Gualberto Garcez Ramos. Curso de processo penal norte-americano.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 260 e 266.