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Postado por admin em 15/mar/2016 -

 Os membros do Tribunal do Júri também gozam do foro privilegiado.   

 

Edson Pereira Belo da Silva, advogado, professor de processo penal, pós-graduado em direito, autor de obras jurídicas inéditas, Coordenador do Núcleo Guarulhos da Escola Superior de Advocacia, membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/SP, articulista, conferencista e palestrante ([email protected]).

 

01. Considerações iniciais.

 

O tema proposto não tem precedente jurisprudencial ou doutrinário, segundo revelou nossas pesquisas. Talvez sequer tenha algo escrito nesse sentido. Mas caso isso realmente se confirme, acreditamos que a razão primordial deve-se ao fato de que jamais um dos membros que compõe o egrégio Conselho de Sentença, em pleno exercício da função de Juiz do fato, ter sido autor de um delito.

 

 

Não temos dúvida alguma que toda a comunidade jurídica que cultua e até busca resgatar a ampliação da competência do Tribunal Popular gostaria de conhecer um caso prático, como, por exemplo: (i) “jurado agride física e verbalmente réu, sem justo motivo e no curso do julgamento, acusado de violentar e matar crianças”; “jurado agride fisicamente um dos seus colegas, no exercício da função, após intensa discussão sobre futebol”; (iii) e “júri é corrompido, financeiramente, para absolver réu”.

 

Tantos outros exemplos, hipotéticos, poderiam ser dados apenas para justificar o foro por prerrogativa da função, caso o magistrado popular, no desempenho do seu mister, fosse o sujeito ativo de uma infração penal. No entanto, o fato de não ter-se encontrado precedente nesse sentido – o que seria negativo para a instituição Júri – só reforça ainda mais o pensamento democrático de que os membros do Conselho de Sentença são mesmos dignos da função constitucional que exercem.

 

O Júri, eventualmente, pode decidir de forma contraria as provas dos autos (artigo 593, inciso III, alínea “d”, do CPP), até porque inexiste instituição jurídica que não cometa os seus erros ou pecados; (1) todavia, tem sabido os membros do Júri observar, através dos tempos, o direito de defesa do acusado (garantia da plenitude de defesa), ouvindo-o atentamente por meio do seu defensor, o qual também sempre gozou de prestígio perante os magistrados popular.

Muitas são as qualidades do Júri que quase não se percebe no juiz togado. Mas as duas principais delas são: a experiência de vida e o julgamento de consciência. O magistrado togado julga o réu como réu, pois ele carrega em sua alma a essência da superioridade estatal, deixando bem claro nos autos que o julgador em tudo se distingue do infrator acusado; ao passo que o juiz popular vê o réu como o semelhante que sofre uma acusação (um mortal igual a ele), decidindo, assim, a sua liberdade conscientemente. O julgador técnico está a uma lua de distância da realidade em que viveu e vivi, encastelado em seu gabinete e condomínio, distante, por vezes, até de si mesmo; enquanto que magistrado leigo convive com realidade brasileira, de modo que ele sente e sofre na pele todos os problemas sociais.

 

Aliás, ultimamente, é a magistratura togada quem tem freqüentado o “noticiário policial”, tendo em conta as inúmeras denúncias graves propostas pelo Ministério Público nas Justiças Federal e estadual. (1-A)   

 

A autoridade do Júri – que se sobrepõe, inquestionavelmente, a do juiz togado – advêm do texto constitucional, notadamente do parágrafo único, do seu artigo 1.º, onde o respectivo legislador deixou assentado: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Na realidade, a “teria na prática é outra coisa”.

 

É que o exercício do poder de julgar, de decidir os objetos jurídicos mais relevantes da vida em sociedade, paulatinamente, veio sendo retirado da competência do povo e passado para a competência do julgador técnico, sem que o dono do poder (o povo) fosse ao menos consultado, cabendo-lhe atualmente e apenas, julgar os crimes dolos contra a vida e os conexos (artigos 5.º, inciso XXXVIII, alínea “d”, da CF, e 78, inciso I, do CPP).

 

Para quem no passado julgou as causas cíveis e penais, os crimes de imprensa (Júri de Imprensa) e os contra a economia popular (Júri de Economia Popular), (2) restou aos juízes tidos como leigos o julgamento dos delitos mencionado acima, apesar da magistratura togada, na sua quase unanimidade, ainda reclamar a supressão do Tribunal Popular.

 

Com se vê, o dono do poder de mandante passou a mandatário, subserviente daquele que legitimamente não o representa: o juiz togado. Daí, portanto, não ser possível, na prática, dizer que o povo está representado no Poder Judiciário, sobremaneira quando ele tem sido afastado quase que integralmente de tal Poder.

 

Destarte, mesmo com todas essas adversidades – que poderia ser tachada de “golpismo” – a instituição do Júri Popular sobrevive bravamente.   

 

02. Garantia do foro por prerrogativa da função.

 

O primeiro fundamento legal para a existência do Tribunal Popular, conforme visto acima, é o artigo 1.º, parágrafo único, da Carta da República, que assevera ser o povo o dono de todo o poder, nos termos da referida Constituição. Mais adiante, o legislador constituinte, dentro do Título “Dos Direitos e das Garantias Fundamentais”, artigo 5.º, inciso XXXVIII, reconheceu a Instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei. Esses são os dois momentos substancias do Júri dentro da Lei Maior.

 

Julgar mais ou menos delitos, inclusive os seus representantes infratores, é uma questão que cabe única e exclusivamente ao povo decidir – detentor de todo Poder – e não aos juízes togados ou aos parlamentares que aprovam leis na madrugada quando a grande maioria da sociedade está repousando.

 

Exercendo diretamente o seu poder de julgar o próximo, como juiz natural de todas as causas que é indistintamente (por que todo poder lhe pertence), o povo toma assento na Tribuna do Júri como autêntico magistrado para dizer o direito. E o diz com sua consciência de quem julga melhor do que juiz togado.

 

Nessa linha de pensamento, entende-se que ao povo – juízes dos juízes – devem ser dadas todas as honrarias, dentre elas o foro por prerrogativa da função para o caso de vir praticar delito no exercício da função de julgador popular, consoante tentamos exemplifica no item 01 deste simplório artigo. Mas isso seria até desnecessário, porque o povo não pode pedir aquilo que ela já tem: “todo o poder”. Logo, o foro por prerrogativa da função lhe pertence, naturalmente ou por razoabilidade.

 

O sistema como posto, protege os representantes do povo e os agentes políticos, (3) mas não resguarda o dono do poder no seu pleno exercício de juiz popular. Vale dizer, que o patrão (o povo), representado na figura dos membros do Júri, se vier a cometer um delito no curso de julgamento que aprecia, irá ser julgado pelo juiz singular. Por sua vez, se o seu empregado (o juiz técnico) for o sujeito ativo de uma infração penal será ele julgado pelo Tribunal togado.

 

Eis aí uma questão surrealista: “quem pode o menos, pode o mais”; “quem pode o mais, não pode o menos”. E ainda ensinam que vivemos numa democracia plena. Voltemos, então, a enfatizar: “a teoria na pratica é outra coisa”.

 

Em não sendo relevante os sobreditos argumentos para os críticos do Direito, lembremos que o Tribunal do Júri é um órgão do Poder Judiciário dos Estados, assim como o Juiz de Direito o é, constando tal instituição nas Constituições dos Estados, “verbis gratia”, São Paulo (artigo 54, inciso III), Rio de Janeiro (artigo 151, inciso III), Minas Gerais (artigo 112), Rio Grande do Sul (artigo 91, inciso IV), Paraná (artigo 93, inciso III). (4)

 

A primeira vista, parece que os membros do Júri não é um órgão dos Tribunais de Justiça dos Estados por não constar essa circunstância dos respectivos textos constitucionais; porém, não há como dissociar o Tribunal Popular dos jurados. Aquele não subsiste sem estes. Se o Júri é um órgão dos Tribunais estaduais, consoante exemplificado, de igual forma, os seus membros gozam de tal status, isto é, o jurado integrante do Conselho de Sentença também é um órgão das Cortes de Justiça dos Estados.

 

Vê-se, nesse passo, que as Constituições Estaduais em referência foram além da própria Carta Federal (artigo 92), à qual foi omissa ao deixar de enumerar o Tribunal do Júri como um dos órgãos do Poder Judiciário. (5) O legislador constituinte, com isso, deixou transparecer que àquela instituição popular – revestida de garantia constitucional – não exerce função jurisdicional, ao passo que o Conselho Nacional de Justiça (cuja função é basicamente disciplinar e não jurisdicional, artigo 103-B, § 4.º, da CF) não padece dessa mesma omissão enumerativa teratológica.

 

É manifesto o contra-senso do legislador: o Tribunal Popular (juízes leigos), onde o povo exerce diretamente todo seu poder, não consta na Constituição Federal como órgão do Poder Judiciário; enquanto que os demais órgãos judiciais enumerados no artigo 92, os quais servem ao povo, foram devidamente lembrados. Nem mesmo na Lei Orgânica Nacional da Magistratura (LC n.º 35/75) cuidou o legislador de inserir o Júri como órgão do Judiciário Nacional.

 

Apesar dessa grave inobservância legislativa ao dono de todo o poder, não se retira dele o direito ao foro por prerrogativa da função no efetivo exercício da magistratura popular, sobretudo quando a Lei Processual Penal, em seu artigo 438, equipara os juízes do fato com os magistrados togados, no tocante a responsabilidade por crimes praticados contra Administração em geral (por exemplo, artigos 316, 317, §§ 1.º e 2.º, e 319, do Código Penal).  

 

Assevera Guilherme de Souza Nucci, ao cotejar o citado dispositivo da norma processual penal, que a “equiparação aos juízes togados é mais um fator que demonstra pertencer o Tribunal do Júri ao Poder Judiciário, já que seus integrantes leigos, assim como os juízes de direito, respondem por crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral”. (6)

 

Também comentando o artigo 438, do Código de Processo Penal, Eduardo Espínola Filho lecionava que os deveres e a responsabilidade dos jurados equiparam-se aos dos juízes, “cujas funções exercem no caso particular, os jurados tem as mesmas responsabilidades destes, quanto ao desempenho fiel, correto honesto da sua importante função”. (7)

 

Oportuno assinalar, ainda, o festejado pensamento de Magarinos Torres, (8) sobre essa mesma questão, quando ainda vigia o revogado Decreto-Lei n.º 167 de 5 de janeiro de 1938 (primeira lei do júri): “O que a nova lei acrescentou às disposições gerais vigentes, foi apenas a equiparação, que nestas era implícita, dos jurados aos magistrados de ofício”.

 

A responsabilidade dos integrantes do Conselho de Sentença, conforme visto, equipara-se ao do juiz presidente do Júri. Por sua vez, o magistrado popular não julga somente questões de fato, segundo tem pregado torrencialmente doutrina e a jurisprudência; muito pelo contrário, o membro do Júri é Juiz do fato e de Direito, isso porque ele julga também matéria de direito, por exemplo, ao votar os inúmeros quesitos relativos às teses de “legítima defesa” e “inexigibilidade de conduta diversa”, valendo ressaltar que essa última tese é uma construção doutrinária e jurisprudencial.

         

Outro sinal de igualdade entre o magistrado togado e o juiz popular nos é dado pelo artigo 295, incisos VI e X, do Código de Processo Penal, o qual dispõe que ambos os julgadores só serão recolhidos em “quartel ou em prisão especial” quando presos provisoriamente. Tal disposição legal, sob a nossa ótica, deixa assente que os juízes que compõem o Júri (o togado e os leigos) possuem os mesmos direitos em caso de prisão cautelar.

 

Nota-se, assim, modestamente, que são sólidos os fundamentos expendidos no sentido de que ao membro da magistratura popular, no pleno exercício da função, é garantido o foro por prerrogativa da função quando ele for autor de delito, como também é uma prerrogativa (artigo 96, inciso III, da CF) do juiz presidente do Conselho de Sentença, exercendo ou não a sua função.

 

Sustentar essa tese pode levar, eventualmente, a comunidade jurídica interpretar que estar-se na contramão daquilo que a sociedade – a voz das ruas ou a opinião pública notadamente – há muito tempo vem reclamando: o fim do que se apelidou de “foro privilegiado” para determinadas autoridades. Certamente, parece ser esse o melhor destino para o foro especial.

 

Destarte, em homenagem ao espírito democrático ainda pouco perceptível no sistema jurídico pátrio, acredita-se que melhor seria submeter todos os servidores do povo e os agentes políticos acusados da prática delitiva ao crivo do egrégio Tribunal do Júri, conforme ocorre nos Estados Unidos da América por força do artigo III, Seção 2, número 3, e da VI Emenda Constitucional. (9)

 

Ocorre, no entanto, que até chegar esse ansioso momento – amadurecimento da democracia ou o iluminismo pleno e acabado – o sol pode não mais estar raiando sobre as nossas cabeças e os poetas terem se extinguido diante da impossibilidade de namorar a lua e paquerar as estrelas.

 

No concerne ao foro competente para julgar o jurado infrator, aplicar-se-á aquele próprio do juiz togado que preside o Júri, no caso Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal.

 

 Conclui-se, portanto, que apesar de não estar expressamente previsto no nosso direito pátrio, é uma garantia do magistrado popular o foro por prerrogativa função no efetivo exercício dessa relevante atividade jurisdicional indiscutivelmente democrática, devendo ser ele julgado pelo respectivo Tribunal competente para julgar o juiz togado presidente do Júri.  

 

    



(1) Nesse sentido, já asseverava Rui Barbosa: “As argüições fundadas contra o Júri não são maiores, entre nós, do que as queixas oferecidas contra a magistratura togada”. Em O júri sob todos os aspectos. Rio Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1950, p.18.  

(1-A) https://conjur.estadao.com.br/static/text/59333,1. Acesso em 23/10/2007.

(2) Silva, Edson Pereira Belo da. Tribunal do júri: ampliação de sua competência para julgar os crimes dolosos com evento morte. São Paulo: Iglu Editora, 2006. p 48.

 

(3) “’Os agentes políticos’ exercem funções governamentais, judiciais, quase-juidiciais, elaborando normas, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência”. Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. 22.ª ed. São Paulo: Malheiros, 197. p. 73.     

(4)  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/principal.htm. Acesso em 23/10/2007.

(5) Nesse sentido, ver magistério de fôlego do professor Hermínio Alberto Marques Porto. Júri: procedimento e aspectos do julgamento: questionários.  12.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 25-30.

(6) Em Código de processo penal comentado. 3.ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 701.

(7) In Código de processo penal brasileiro anotado. 3.º ed. v. IV. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1955. p 375.

(8) Em Processo penal do júri no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Jacinto, 1939. p. 109.

(9)  Ver João Gualberto Garcez Ramos. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 260 e 266.